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José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo

dependurados, a outros retiraram-nos, estão no chão, à espera, são poucos os que têm família a rodeá-

los, é que estes rebeldes, na sua maior parte, vieram de longe, pertencem a uma tropa diversa que neste lugar travou a sua última e unida batalha, neste momento estão definitivamente dispersos, cada um por si, na inexprimível solidão da morte. Jesus não vê o pai, o coração quer encher-se-lhe de alegria, mas a razão diz, Espera, ainda não chegámos ao fim, e realmente o fim é agora, deitado no chão está o pai que eu procurava, quase não sangrou, só as grandes bocas das chagas nos pulsos e nos pés, parece que dormes, meu pai, mas não, não dormes, não poderias, com as pernas assim torcidas, já foi caridade terem-te descido da cruz, mas os mortos são tantos que as boas almas que de ti cuidaram não tiveram tempo para endireitar-te os ossos partidos. O rapazinho chamado Jesus está ajoelhado ao lado do cadáver, chorando, quer tocar-lhe, mas não se atreve, porém chega o momento em que a dor é mais forte que o temor da morte, então abraça-se ao corpo inerte, Meu pai, meu pai, diz, e outro grito se junta ao dele, Ai José, ai meu marido, é Maria que enfim chegou, exausta, vinha chorando já de longe porque já de longe, vendo parar-se o filho, sabia o que a esperava. O choro de Maria redobra quando ela repara na cruel torção das pernas do marido, na verdade não se sabe, depois de morrer, o que acontece às dores sentidas em vida, principalmente as últimas, é possível que com a morte se acabe realmente tudo, mas também nada nos garante que, ao menos durante umas horas, uma memória de sofrimento não se mantenha num corpo que dizemos morto, não sendo mesmo de excluir ser a putrefacção o último recurso que resta à matéria para, definitivamente, se libertar da dor. Com uma doçura, com uma suavidade que em vida do marido não se atreveria a usar, Maria tentou reduzir os lastimáveis ângulos das pernas de José, que, tendo-lhe ficado a túnica, ao descerem-no da cruz, um pouco arregaçada, lhe davam o aspecto grotesco de um fantoche partido nos engonços. Jesus não tocou no pai, ajudou apenas a mãe a puxar-lhe a túnica para baixo, mesmo assim ficaram à vista as magras canelas do homem, talvez, no corpo humano, a parte que mais pungente impressão de fragilidade nos dá. Os pés, por estarem as tíbias rotas, descaíam lateralmente, mostrando as feridas dos calcanhares, donde era preciso enxotar constantemente as moscas vindas ao cheiro do sangue. As sandálias de José tinham caído ao lado do grosso tronco de que fora o fruto final. Gastas, cobertas de pó, ali poderiam ter ficado ao abandono se Jesus as não tivesse recolhido, fê-lo sem pensar, como se tivesse recebido uma ordem estendeu o braço, Maria nem deu pelo movimento, e prendeu-as no cinto, acaso deveria ser esta a herança simbólica mais perfeita dos primogénitos, há coisas que começam de uma maneira tão simples como esta, por isso se diz ainda hoje, Com as botas do meu pai também eu sou homem, ou, segundo versão mais radical, Com as botas do meu pai é que eu sou homem.

Um pouco afastados, estavam soldados romanos vigiando, prontos a intervir no caso de haver atitudes ou gritos sediciosos por parte daqueles que, chorando e lamentando, cuidavam dos supliciados. Mas esta gente não era de febra guerreira, ou não o demonstravam agora, o que faziam era dizer as suas preces fúnebres, iam de crucificado em crucificado, e nisto tardaram mais de duas horas das nossas, nenhum destes mortos ficou sem o bento viático das orações e das rasgaduras de vestes, do lado esquerdo sendo parentes, do lado direito não o sendo, na tranquilidade da tarde ouviam-se as vozes entoando os versículos, Senhor, que é o homem para que te interesses por ele, que é o filho do homem para que com ele te preocupes, o homem é semelhante a um sopro, os seus dias passam como a sombra, qual é o homem que vive e que não vê a morte, ou poupa a sua alma escapando à sepultura, o homem nascido de mulher é escasso de dias e farto de inquietação, aparece como a flor e como ela é cortada, vai como vai a sombra e não permanece, que é o homem para que te lembres dele, e o filho do homem para que o visites. Contudo, depois deste reconhecimento da irremediável insignificância do homem perante o seu Deus, proferido num tom tão profundo que mais parecia vir da própria consciência do que da voz que serve as palavras, o coro subia e atingia uma espécie de exultação, para proclamar à face do mesmo Deus uma inesperada grandeza, Porém, lembra-te de que pouco menor fizeste o homem do que os anjos, e de glória e honra o coroaste.

Quando chegaram a José, a quem não conheciam, e porque era o último dos quarenta, não foram tão demorados, no entanto o carpinteiro levou para o outro mundo tudo quanto precisava, e a pressa justificava-se porque a lei não permite que os crucificados fiquem até ao dia seguinte sem sepultura, e o sol já lá vai descaindo, daqui ao crepúsculo não tarda. Sendo ainda tão novo, Jesus não tinha de rasgar a túnica, estava dispensado dessa demonstração de luto, mas a sua voz, fina, vibrante, ouviu-se 57

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por cima das outras quando entoou, Bendito sejas tu, Senhor, nosso Deus, rei do universo, que com justiça te criou, que com justiça te manteve a vida, que com justiça te alimentou, que com justiça te fez conhecer o mundo, que com justiça te há-de fazer ressurgir, bendito sejas tu, Senhor, que os mortos ressuscitas. Deitado no chão, José, se ainda sente as dores dos cravos, talvez possa também ouvir estas palavras, ele saberá que lugar ocupou verdadeiramente a justiça de Deus na sua vida, agora que nem de uma nem de outra pode esperar mais nada. Terminadas as preces, era preciso sepultar os mortos, mas, sendo tantos e vindo tão próxima a noite, não é possível procurar para cada um o seu próprio lugar, túmulos a sério, que se pudessem tapar com uma pedra rodada, e quanto a envolver os corpos com as faixas mortuárias, ou mesmo a simples mortalha, nem pensar. Deliberaram pois cavar uma vala comprida onde todos coubessem, não foi esta a primeira vez nem há-de ser a última, os corpos descerão à terra vestidos como se encontram, a Jesus deram também uma enxada e ele trabalhou valentemente a terra ao lado dos homens adultos, quis até o destino, que em tudo é mais sábio, que no terreno por ele cavado fosse sepultado o pai, assim se cumprindo a profecia, O filho do homem enterrará o homem, mas ele próprio ficará insepulto. Que estas palavras, à primeira vista enigmáticas, não vos levem a pensamentos superiores, o que aí fica pertence à escala do óbvio, quis apenas dizer que o último homem, por último ser, não terá quem lhe dê sepultura. Ora, não será tal o caso deste rapaz que acaba de enterrar o pai, com ele não se vai acabar o mundo, ainda cá ficaremos milénios e milénios em constante nascer e morrer, e se o homem tem sido, com igual constância, lobo e carrasco do homem, com mais razões ainda continuará a ser o seu coveiro. O sol já passou para o outro lado da montanha. Há grandes nuvens escuras levantadas sobre o vale do Jordão, movendo-se devagar na direcção do poente, como atraídas por essa última luz que lhes tinge de vermelho o nítido bordo superior. O ar refrescou de repente, é bem possível que esta noite chova, mesmo não sendo o próprio da estação. Os soldados já se retiraram, aproveitam a última luz do dia para regressar ao acampamento que está por aí algures e onde provavelmente já chegaram os seus camaradas de armas que a Nazaré foram de investigadores, uma guerra moderna assim é que se faz, com muita coordenação, não como tem andado a fazê-la o Galileu, o resultado está à vista, trinta e nove guerrilheiros crucificados, o quadragésimo era um pobre inocente, vinha por bem e mal lhe saiu. A gente de Séforis irá procurar ainda na cidade queimada um lugar onde ficar de noite, e amanhã cedo cada família passará revista ao que restar da sua casa, se alguns bens escaparam ao incêndio, e depois ala a buscar vida, que Séforis não foi apenas queimada, tão cedo não vai Roma permitir que a cidade seja reconstruída. Maria e Jesus são duas sombras no meio duma floresta só feita de troncos, a mãe puxa o filho para si, dois medos à procura duma coragem, o céu negro não ajuda, e os mortos debaixo do chão parece quererem reter os pés dos vivos. Jesus disse à mãe, Dormimos na cidade, e Maria respondeu, Não podemos, teus irmãos estão sozinhos e têm fome. Mal viam o chão que pisavam.