Finalmente, depois de muito tropeçar e uma vez cair, alcançaram a estrada, que era como o leito seco de um rio abrindo um pálido rasto na noite. Quando já tinham deixado Séforis para trás, começou a chover, primeiro umas gotas pesadas que faziam na poeira espessa do caminho um ruído macio, se tais palavras, emparelhadas, fazem sentido. Depois a chuva carregou, contínua, insistente, em pouco tempo a poeira tornou-se lama, Maria e o filho tiveram de descalçar-se para não perderem as sandálias nesta jornada. Vão calados, a mãe cobrindo a cabeça do filho com o seu manto, não têm nada para dizer um ao outro, talvez até pensem, confusamente, que não é certo estar José morto, que em chegando a casa o irão encontrar atendendo aos filhos o melhor que pode, e que perguntará à mulher, Que ideia foi a vossa de irem à cidade sem que eu vos desse licença, porém já voltaram aos olhos de Maria as lágrimas, e não foi apenas por causa do desgosto e do luto, é também esta infinita canseira, este castigo da chuva, impiedoso, esta noite sem remédio, tudo triste e negro de mais para que José possa estar vivo. Um dia, alguém irá dizer à viúva que um prodígio se deu às portas de Séforis, terem ganho raízes novas e folhas os troncos que serviram ao suplício, e dizer prodígio não é abusar da palavra, em primeiro lugar porque, contra o costume, os romanos não os levaram consigo quando se foram, em segundo lugar por ser impossível que troncos assim cortados, no pé e na cabeça, ainda tivessem dentro seiva e rebentos capazes de tornar paus grosseiros e ensanguentados em árvores vivas. Foi o sangue dos mártires, diziam os crédulos, foi a chuva, rebatiam os cépticos, mas nem o sangue derramado nem a água caída do céu haviam podido fazer verdejar, antes, tantas cruzes abandonadas nos cerros das montanhas ou nas chapadas do deserto. O que ninguém ousou foi dizer 58
José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo
que havia sido a vontade de Deus, não só por ser essa vontade, qualquer que ela seja, inescrutável, mas também por não se reconhecerem razões e méritos particulares aos crucificados de Séforis para serem beneficiários de tão singular manifestação da graça divina, muito mais própria de deuses pagãos. Por muito tempo aqui ficarão estas árvores, e o dia chegará em que se terá perdido a memória do que aconteceu, então, dado que os homens para tudo querem explicação, falsa ou verdadeira, inventar-se-ão umas quantas histórias e lendas, ao princípio ainda conservando alguma relação com os factos, depois mais tenuemente, até tudo se transformar em pura fábula. E outro dia chegará em que as árvores morrerão de velhice e serão cortadas, e outro ainda em que, por causa duma auto-estrada, ou duma escola, ou duma casa de morar, ou dum centro comercial, ou dum fortim de guerra, as escavadoras revolverão o terreno e farão sair à luz do dia, assim outra vez nascidos, os esqueletos que por dois mil anos ali jazeram. Virão então os antropólogos e um professor de anatomia examinará os restos, para mais tarde anunciar ao mundo escandalizado que, naquele tempo, os homens, afinal, eram crucificados com as pernas encolhidas. E porque o mundo não podia exautorá-lo em nome da ciência, aborreceu-o em nome da estética. Quando Maria e Jesus chegaram a casa, sem um fio de roupa enxuto em cima do corpo, emporcalhados de lama e tiritando de frio, as crianças estavam mais sossegadas do que se podia ter imaginado, graças ao desembaraço e iniciativa dos mais velhos, Tiago e Lísia, que, percebendo que a noite arrefecera, se lembraram de acender o forno, e assim se aconchegaram todos, tentando compensar os apertos da fome de dentro pelo conforto do calor de fora.
Ouvindo o bater da cancela no pátio, Tiago foi abrir a porta, a chuva tornara-se num dilúvio donde vinham fugindo a mãe e o irmão, e quando eles entraram foi como se a casa tivesse ficado de repente inundada. As crianças olharam, souberam que o pai não viria quando a porta voltou a fechar-se, mas calaram, e foi Tiago quem fez a pergunta, O pai. O barro do chão absorvia lentamente a água que pingava das túnicas encharcadas, ouvia-se no silêncio o estalar da lenha húmida que ardia na entrada do forno, as crianças olhavam a mãe. E Tiago tornou a perguntar, O pai. Maria abriu a boca para responder, mas a palavra fatal, como o baraço da forca, apertou-lhe a garganta, e foi Jesus quem teve de dizer, O pai morreu, e, sem saber bem por que o fazia, ou por ser essa a prova insofismável da definitiva ausência, retirou do cinto as sandálias molhadas e mostrou-as aos irmãos, Aqui estão. Já as primeiras lágrimas tinham saltado dos olhos dos mais crescidos, mas foi a vista das sandálias vazias que fez alastrar o choro, agora estavam chorando todos, a viúva e os seus nove filhos, e ela não sabia a qual acudir, ajoelhou-se enfim no chão, exaurida de forças, e as crianças vieram para ela e rodearam-na, um cacho vivo que não precisava ser pisado para verter esse branco sangue que é a lágrima. Apenas Jesus se mantivera de pé, apertando as sandálias contra o peito, vagamente pensando que um dia as calçará, neste instante mesmo, se fosse capaz de ousar. Aos poucos, as crianças foram deixando a mãe, os mais crescidos, por essa espécie de pudor que quer que soframos sozinhos, os mais pequenos, porque os irmãos se tinham ido e porque eles próprios não podiam atingir um real sentimento de desgosto, choravam apenas, nisto são as crianças como os velhos, que choram por coisa nenhuma, mesmo quando já deixaram de sentir, ou porque deixaram de sentir. Durante algum tempo ali ficou Maria, de joelhos no meio da casa, como se esperasse uma decisão ou uma sentença, deu-lhe o sinal um longo arrepio, a roupa molhada no corpo, então levantou-se, abriu a arca e tirou uma túnica velha e remendada que fora do marido, entregou-a a Jesus, dizendo, Despe o que tens vestido, põe isto e vai sentar-te ao pé do lume. Depois chamou as duas filhas, Lísia e Lídia, fê-las levantar e segurar uma esteira, a fazer de biombo, e por trás dela mudou também de roupa, após o que, com o pouco de comer que havia em casa, começou a preparar a ceia. Jesus, junto ao forno, aquecia-se com a túnica do pai, que lhe ficava comprida de mangas e de fralda, já se sabe que noutra ocasião os irmãos se teriam rido dele, espantalho que devia parecer, mas hoje não se atreveriam, não só em virtude do grande desgosto, mas também por aquele ar de adulta majestade que se desprendia do rapaz, como se de uma hora para outra tivesse crescido até à sua máxima altura, e esta impressão tornou-se ainda mais forte quando ele, em movimentos lentos e medidos, colocou as húmidas sandálias do pai a jeito de receberem o calor da boca do forno, gesto que não serviria a qualquer fim prático, se já não era deste mundo o dono delas. Tiago, o irmão que vinha a seguir, foi sentar-se ao lado dele, e perguntou em voz baixa, Que foi que aconteceu ao nosso pai, Crucificaram-no com os guerrilheiros, respondeu Jesus também sussurrando, Porquê, Não sei, estavam lá quarenta, e o pai era um deles, Talvez fosse um guerrilheiro, Quem, O pai, Não era, sempre estava aqui, entregue ao seu trabalho, E o burro, 59