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José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo

encontraram-no, Nem vivo, nem morto. A mãe tinha acabado de preparar a ceia, sentaram-se todos à volta da malga comum e comeram do que havia. No fim, os mais novinhos já cabeceavam de sono, é certo que o espírito ainda estava agitado, mas o corpo cansado reclamava descanso. As esteiras dos rapazes foram estendidas ao longo da parede do fundo, Maria dissera às filhas, Deitem-se aqui comigo, ficou cada uma de seu lado para não haver ciúmes. Pela frincha da porta entrava um ar frio, mas a casa mantinha-se aquecida, havia o calor remanescente do forno, o dos corpos próximos, a família, aos poucos, apesar da tristeza e dos suspiros, ia caindo no sono, Maria dava o exemplo, segurava as lágrimas, queria que os filhos adormecessem depressa, por eles próprios, mas também para poder ficar sozinha com o seu desgosto, de olhos bem abertos para a sua futura vida sem marido e nove filhos para criar. Mas também a ela, em meio de um pensamento, se lhe foi a dor da alma, o corpo indiferente recebeu o sono sem resistir, e agora todos dormem. A meio da noite, um gemido fez despertar Maria. Pensou que havia sido ela própria, a sonhar, mas não estivera sonhando, e o gemido repetira-se agora, mais forte. Endireitou-se, com cuidado para não acordar as filhas, olhou em redor, mas a luz da candeia não alcançava o fundo da casa, Qual deles será, pensou, mas em seu coração sabia que era Jesus que estava gemendo. Ergueu-se sem ruído, foi buscar a candeia ao prego da porta e, levantando-a acima da cabeça para alumiar melhor, passou em revista os filhos adormecidos, Jesus, é ele que se mexe e murmura, como se estivesse lutando num pesadelo, de certeza que sonha com o pai, um menino desta idade ter visto o que viu, morte, sangue e tortura. Pensou Maria que devia acordá-lo, interromper esta outra forma de agonia, mas não o fez, não queria ouvir o filho contar-lhe o que sonhava, mas esta razão mesma lhe esqueceu quando reparou que Jesus tinha calçadas as sandálias do pai. O insólito do caso desconcertou-a, que estúpida ideia, sem justificação, e também que falta de respeito, usar as sandálias do próprio pai no próprio dia da sua morte. Voltou para a esteira, sem saber já o que pensar, talvez o filho estivesse a repetir em sonho, por obra das sandálias e da túnica, a mortal aventura do pai desde que de casa saiu, e, sendo assim, passara ao mundo dos homens, a que já pertencia pela lei de Deus, mas onde agora se instalava por um novo direito, o de suceder ao pai nos bens, fossem eles somente uma túnica velha e umas sandálias cambadas, e nos sonhos, mesmo para apenas reviver os últimos passos dele na terra. Não pensou Maria que o sonho pudesse ser outro. O dia amanheceu límpido, sem nuvens, o sol veio quente e luminoso, não havia que temer um retorno da chuva. Maria saiu de casa cedo, com todos os seus filhos varões em idade de ir à escola, e também Jesus, que, como foi dito na altura, já acabou a sua instrução. Ia à sinagoga dizer da morte de José e das presumíveis circunstâncias que para ela teriam concorrido, acrescentando que, apesar de tudo, a ele como aos outros infelizes, ponto não despiciendo, tinham sido feitas as encomendações fúnebres que a pressa e o lugar permitiam, em todo o caso bastantes, em teor e em número, para poder afirmar-se que, no geral, o ritual fora cumprido. No regresso a casa, enfim a sós com o filho mais velho, pensou Maria que era uma boa ocasião para perguntar-lhe por que havia calçado ele as sandálias do pai, mas no último momento um escrúpulo a reteve, o mais provável seria não saber Jesus que explicação dar-lhe e, assim humilhado, ver, pelos olhos da mãe, confundido o seu acto, sem dúvida excessivo, com a falta trivialíssima que é levantar-se de noite uma criança para ir, às escondidas, comer um bolo, podendo sempre, se apanhada, alegar a fome como desculpa, o que do episódio das sandálias não poderá ser dito, salvo tratando-se duma outra espécie de fome, que não saberíamos, nós, explicar. Na cabeça de Maria surgiu depois outra ideia, que o filho era agora o chefe da casa e da família, e, sendo assim, estava bem que ela, sua mãe e sua dependente, se empenhasse em mostrar-lhe respeito e atenção condizentes, como fosse, por exemplo, interessar-se por aquele mal de espírito que lhe afligira o sono, Sonhaste com teu pai, perguntou, e Jesus fez que não ouvira, virou a cara para o outro lado, mas a mãe, firme no propósito, insistiu, Sonhaste, não esperava que o filho lhe respondesse primeiro, Sim, logo a seguir, Não, e que se lhe carregasse a expressão daquela maneira, que parecia que tinha outra vez diante dos olhos o pai morto. Prosseguiram calados o caminho, e em chegando a casa foi-se Maria a cardar uma lã, pensando já que por necessidade do sustento da família deveria começar a fazê-lo mais para fora, aproveitando a boa mão que continuava a ter para o mester.

Por sua vez, Jesus, que olhara o céu, a confirmar as boas disposições do tempo, chegou-se ao banco de carpinteiro que fora de seu pai e que estava no alpendre, começando por verificar, uma por uma, as obras interrompidas, e depois o estado das ferramentas, com o que Maria se alegrou muito em seu coração, ao ver que o filho tomava tão a sério, desde este primeiro dia, as suas novas 60

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responsabilidades. Quando os mais novos voltaram da sinagoga e todos se juntaram para comer, só um observador atentíssimo notaria que esta família sofrera há poucas horas a perda do seu chefe natural, marido e pai, e, a não ser Jesus, cujas negras sobrancelhas, crispadas, seguem um pensamento escondido, os mais, incluindo Maria, parecem tranquilos, de uma serenidade composta, porque está escrito, Chora amargamente e irrompe em gritos de dor, observa o luto segundo a dignidade do morto, um dia ou dois por causa da opinião pública, depois consola-te da tua tristeza, e escrito está também, Não entregues o teu coração à tristeza, mas afasta-a e lembra-te do teu fim, não te esqueças dele porque não haverá retorno, em nada aproveitarás ao morto e só causarás dano a ti mesmo. Ainda é cedo para o riso, que a seu tempo virá, como os dias vêm após os dias e as estações após as estações, mas a melhor lição é a do Eclesiastes, que disse, Por isso louvei a alegria, visto não haver nada de melhor para o homem, debaixo do sol, do que comer, beber e divertir-se, é isto que o acompanha no seu trabalho, durante os dias que Deus lhe outorgar debaixo do sol. À tarde, Jesus e Tiago subiram à açoteia da casa para tapar com palha amassada em barro as fendas do tecto, pelas quais, durante a noite inteira, a água gotejara, a ninguém há-de surpreender que então não se tenha falado de tão humildes pormenores da nossa vida quotidiana, a morte de um homem, inocente ou não, sempre deverá prevalecer sobre todas as coisas. Outra noite chegou, outro dia começava, ceou a família como pôde e foi-se deitar nas esteiras. Lá pela madrugada, Maria acordou espavorida, não era ela quem sonhava, não, mas o filho, e agora com choros e gemidos de cortar o coração, de tal modo que acordaram também os irmãos mais velhos, aos outros seria preciso muito mais para os arrancar do sono profundo que é o da inocência nestas idades. Maria correu a acudir ao filho que se debatia, com os braços levantados, como se tentasse defender-se de golpes de espada ou de lança, aos poucos esmoreceu, ou por se terem retirado os salteadores ou por se lhe estar acabando a vida. Jesus abriu os olhos, agarrou-se com força à mãe como se não fosse o homenzinho que é, patrão da sua família, até um homem adulto, se chora, se transforma em criancinha, não o querem confessar, pobres tontos, mas o dorido coração embala-se nas lágrimas. Que tens, meu filho, que tens, perguntou Maria, inquieta, e Jesus não podia responder, ou não queria, uma crispação em que já não havia nada da criança selava-lhe os lábios, Diz-me o que sonhaste, insistiu Maria, e, como tentando abrir-lhe um caminho, Viste o pai, o rapaz fez um brusco gesto negativo, depois soltou-se-lhe dos braços e deixou-se recair na esteira, Vai dormir, disse, e, dirigindo-se aos irmãos, Não é nada, durmam, eu estou bem. Maria voltou para junto das filhas, mas ficou, quase até ao amanhecer, de olhos abertos, atenta, esperando a cada momento que o sonho de Jesus se repetisse, que sonho teria sido esse para tão grande aflição, porém nada veio a acontecer. Não pensou Maria que o filho poderia estar acordado só para impedir-se de voltar a sonhar, o que sim pensou foi na coincidência, em verdade singular, de Jesus, que sempre gozara de sonos tranquilos, ter começado com os pesadelos a seguir à morte do pai, Senhor meu Deus, que não seja o mesmo sonho, implorou, o senso comum dizia-lhe, para sua tranquilidade, que os sonhos não se legam nem se herdam, bem enganada está, que não têm precisado os homens de comunicar uns aos outros os sonhos que sonham para que os andem sonhando iguais de pais em filhos e às mesmas horas. Enfim, amanheceu, iluminou-se a frincha da porta. Quando acordou, Maria viu que o lugar do filho mais velho estava vazio, Aonde terá ido, pensou, levantou-se rapidamente, abriu a porta e espreitou para fora, Jesus estava sentado debaixo do alpendre, na palha do chão, com a cabeça sobre os braços e os braços sobre os joelhos, imóvel. Arrepiada pelo ar frio da manhã, mas também, embora disso mal tivesse consciência, pela visão da solidão do filho, a mãe aproximou-se, Sentes-te doente, perguntou, o rapaz levantou a cabeça, Não, doente não estou, Então, que se passa contigo, São estes meus sonhos, Sonhos, dizes, Um sonho só, o mesmo esta noite e a outra, Sonhaste com o pai na cruz, Já te tinha dito que não, sonho com o pai mas não o vejo, Havias-me dito que não sonhaste com ele, Porque não o vejo, mas tenho a certeza de que está no sonho, E que sonho é esse que te anda a atormentar. Jesus não respondeu logo, olhou a mãe com uma expressão desamparada, e Maria sentiu como se um dedo lhe tocasse o coração, ali estava o seu filho, com aquela cara ainda de menino, o olhar mortiço de não haver dormido, e o primeiro buço de homem, ternamente ridículo, era o seu filho primogénito, a ele se confiava e entregava para o resto dos seus dias, Conta-me tudo, pediu, e Jesus disse, enfim, Sonho que estou numa aldeia que não é Nazaré e que tu estás comigo, mas não és tu porque a mulher que no sonho é minha mãe tem uma cara diferente, e há outros rapazes da minha idade, não sei quantos, e mulheres que são as mães, não sei se as verdadeiras, houve alguém que nos 61