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José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo

reuniu a todos na praça, e estamos à espera de uns soldados que nos vêm matar, ouvimo-los na estrada, aproximam-se mas não os vemos, nessa altura ainda não estou com medo, sei que é um sonho ruim, nada mais, mas de repente tenho a certeza de que o pai vem lá com os soldados, viro-me para ti, para que me defendas, embora não esteja seguro de que sejas tu, mas tu foste-te embora, e as mães todas foram-se embora, apenas ficámos nós, que então já não somos rapazes, mas meninos muito pequenos, eu estou deitado no chão e começo a chorar, e os outros choram todos, mas eu sou o único cujo pai vem com os soldados, olhamos para a entrada da praça, sabemos que entrarão por ali, e não entram, estamos à espera de que entrem mas não entram, e é ainda pior, os passos aproximam-se, é agora, e não é, não chega a ser, então vejo-me a mim mesmo, como sou agora, dentro da criancinha que também sou, e começo a fazer um grande esforço para sair dela, é como se estivesse atado de pés e mãos, chamo por ti, que te foste, chamo pelo pai, que me vem matar, e assim foi que acordei, esta noite e a outra. Maria arrepiava-se de horror, logo às primeiras palavras, mal percebeu o sentido do sonho, baixara os olhos aflitos, afinal, estava a acontecer o que tanto temera, contra todo o senso comum e a razão Jesus herdara o sonho do pai, não exactamente da mesma maneira, mas como se o pai e o filho, cada um em seu lugar, o estivessem, ao mesmo tempo, sonhando. E tremeu de verdadeiro pavor quando ouviu o filho perguntar-lhe, Que sonho era aquele que o pai tinha todas as noites, Ora, um sonho mau, como qualquer pessoa, Mas esse sonho, que era, Não sei, nunca mo contou, Mãe, não deves esconder a verdade ao teu filho, Não seria bom para ti sabê-lo, Que podes tu saber do que é bom ou mau para mim, Respeita a tua mãe, Sou teu filho, tens o meu respeito, mas agora estás a ocultar de mim o que é da minha vida, Não me obrigues a falar, Um dia perguntei ao pai qual a razão do seu sonho, e ele disse-me que nem eu podia fazer-lhe todas as perguntas, nem ele podia dar-me todas as respostas, Aí tens, aceita as palavras de teu pai, Aceitei-as enquanto viveu, mas agora sou o chefe da família, herdei dele uma túnica, umas sandálias e um sonho, com isto já poderia ir-me ao mundo, porém preciso saber que sonho levaria comigo, Meu filho, talvez não tornes a sonhá-

lo. Jesus olhou a mãe de frente, forçou-a a olhá-lo também, e disse, Renunciarei a sabê-lo se na próxima noite o sonho não voltar, se não voltar nunca mais, mas, se ele se repetir, jura-me tu que me dirás tudo, Juro, respondeu Maria, que não sabia já como defender-se da insistência e da autoridade do filho. No silêncio do seu angustiado coração, um apelo subiu para Deus, sem palavras, ou, se as tivesse, poderiam ser, Passa-me, Senhor, a mim, este sonho, que até ao dia da minha morte tenha eu de sofrê-lo em todos os instantes, mas o meu filho, não, o meu filho, não. Disse Jesus, Lembrar-te-ás do que prometeste, Lembrar-me-ei, respondeu Maria, mas consigo mesma ia repetindo, O meu filho, não, o meu filho, não. O meu filho, sim. Veio a noite, de madrugada um galo preto cantou, e o sonho repetiu-se, o focinho do primeiro cavalo apareceu na esquina. Maria ouviu os gemidos do filho, mas não foi consolá-lo. E Jesus, a tremer, banhado no suor do medo, não precisou perguntar para saber que a mãe também acordara, Que irá ela contar-me, pensou, enquanto Maria, por seu lado, cismava, Como lho contarei, e buscava maneiras de não dizer tudo. De manhã, quando se levantaram, Jesus disse à mãe, Vou contigo levar os meus irmãos à sinagoga, depois virás tu comigo ao deserto, pois temos de falar. A pobre Maria, enquanto preparava a comida dos filhos, caíam-lhe as coisas das mãos, mas o vinho da agonia fora servido, agora havia que bebê-lo. Deixados os mais novos na escola, mãe e filho saíram da aldeia, e ali, no descampado, sentaram-se debaixo duma oliveira, ninguém, a não ser Deus, se por estes lados andar, poderá ouvir o que disserem, as pedras sabemos que não falam, mesmo se as batemos umas contra as outras, e quanto à terra profunda, ela é o lugar onde todas as palavras se tornam em silêncio. Jesus disse, Cumpre o que juraste, e Maria respondeu sem rodear, Teu pai sonhava que ia de soldado, com outros soldados, a matar-te, A matar-me, Sim, Esse é o meu sonho, Sim, confirmou ela, aliviada, Afinal foi simples, pensou, e em voz alta, Agora já sabes, voltemos para casa, os sonhos são como as nuvens, vêm e vão, foi só por muito quereres a teu pai que lhe herdaste o sonho, mas ele não te matou, nem nunca te mataria, e ainda que tivesse sido por uma ordem do Senhor, no último momento o anjo lhe deteria a mão, como fez a Abraão quando ia sacrificar seu filho Isaac, Não fales do que não sabes, cortou secamente Jesus, e Maria viu que o vinho amargo teria de ser bebido até ao fim, Consente, meu filho, que ao menos eu saiba que nada se pode opor à vontade do Senhor, qualquer que seja, e que se o Senhor teve agora uma vontade e logo a seguir vai ter outra, contrária, nem tu nem eu somos parte na contradição, respondeu Maria, e, cruzando as mãos no regaço, ficou à espera. Jesus disse, Responderás a todas as perguntas que eu te 62