José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo
fizer, Responderei, disse Maria, Desde quando começou meu pai a ter o sonho, Há muitos anos, Quantos, Desde que nasceste, Todas as noites o sonhou, Sim, creio que todas as noites, nos últimos tempos já não me fazia acordar, uma pessoa acostuma-se, Nasci em Belém de Judeia, Assim é, Que foi que aconteceu no meu nascimento para que meu pai sonhasse que me ia matar, Não foi no teu nascimento, Mas tu disseste, O sonho apareceu umas semanas depois, Que foi que se passou nessa altura, Herodes mandou matar os meninos de Belém com menos de três anos, Porquê, Não sei, O pai sabia, Não, Mas a mim não me mataram, Vivíamos numa cova fora da aldeia, Queres dizer que os soldados não me mataram porque não chegaram a ver-me, Sim, Meu pai era soldado, Nunca foi soldado, Que fazia então, Trabalhava nas obras do Templo, Não compreendo, Estou a responder às tuas perguntas, Se os soldados não chegaram a ver-me, se vivíamos fora da aldeia, se o pai não era soldado, se não tinha responsabilidade, se nem sequer sabia por que motivo mandou Herodes matar os meninos, Sim, teu pai não soube por que motivo Herodes mandou matar os meninos, Então, Nada, se não tens mais perguntas a fazer-me, eu não tenho mais respostas a dar-te, Ocultas-me qualquer coisa, Ou és tu que não és capaz de ver. Jesus ficou calado, sentia sumir-se, como água num chão seco, a autoridade com que falara à mãe, ao mesmo tempo que, num canto qualquer da sua alma, lhe parecia ver desenroscar-se uma ideia ignóbil, de linhas que se moviam ainda, mas monstruosa logo ao nascer.
Na encosta duma colina em frente passava um rebanho de ovelhas, tanto elas como o pastor tinham a cor da terra, eram terra movendo-se sobre terra. O rosto tenso de Maria descobriu-se numa expressão de surpresa, aquele pastor alto, aquele modo de caminhar, tantos anos depois e neste justo momento, que sinal será, afirmou melhor os olhos e duvidou, que agora era um vulgar vizinho de Nazaré levando as suas poucas ovelhas ao pasto, tão enfezadas elas como ele. No espírito de Jesus a ideia acabou de formar-se, quis sair para fora do corpo mas a língua travou-lhe a passagem, enfim, com uma voz temerosa de si mesma disse, O pai sabia que os meninos iam ser mortos. Não perguntou, por isso Maria não teve de responder. Como soube ele, agora sim que era uma pergunta, Estava a trabalhar nas obras do Templo, em Jerusalém, quando ouviu uns soldados que falavam do que iam fazer, E depois, Veio a correr para te salvar, E depois, Pensou que não seria preciso fugirmos e deixámo-nos ficar na cova, E depois, Mais nada, os soldados fizeram o que lhes tinham mandado e foram-se embora, E depois, Depois voltámos para Nazaré, E o sonho começou, A primeira vez foi na cova. As mãos de Jesus subiram de repente até ao rosto como se o quisessem rasgar, a voz soltou-se num grito irremediável, O meu pai matou os meninos de Belém, Que loucura estás dizendo, mataram-nos os soldados de Herodes, Não, mulher, matou-os o meu pai, matou-os José filho de Heli, que sabendo que os meninos iam ser mortos não avisou os pais deles, e quando estas palavras ficaram todas ditas ficou também perdida a esperança de consolação. Jesus lançou-se para o chão, a chorar, Os inocentes, os inocentes, dizia ele, parece incrível que um simples rapaz de treze anos, idade em que o egoísmo facilmente se explica e desculpa, possa ter sofrido tão forte abalo por causa duma notícia que, se tivermos em conta o que sabemos do nosso mundo contemporâneo, deixaria indiferente a maior parte da gente. Mas as pessoas não são todas iguais, excepções há-as para o bem e para o mal, e esta é sem dúvida das melhores, um rapazito a chorar por um antigo erro cometido por seu pai, e que talvez esteja chorando também por si próprio, se, como tem parecido, amava a esse pai duas vezes culpado. Maria estendeu a mão para o filho, quis tocar-lhe, mas ele furtou o corpo, Não me toques, a minha alma tem uma ferida, Jesus, meu filho, Não me chames teu filho, tu também tens culpa. São assim os juízos da adolescência, radicais, na verdade Maria estava tão inocente como os meninos assassinados, os homens, minha irmã, é que decidem de tudo, chegou aqui o meu marido e disse, Vamo-nos embora, depois emendou, Afinal não vamos, e sem mais explicações, foi preciso eu perguntar-lhe, Que gritos são aqueles. Maria não respondeu ao filho, seria tão fácil demonstrar-lhe que não era culpada, mas pensou no marido crucificado, também ele morto inocente, e sentiu, com lágrimas e vergonha, que o amava agora, mais do que quando fora vivo, por isso calou-se, a culpa que um levou pode levá-la outro. Disse Maria, Vamos para casa, não temos mais nada a dizer aqui, e o filho respondeu-lhe, Vai tu, eu fico. Parecia que se perdera o rasto de ovelha ou pastor, o deserto era de facto um deserto, e até as casas além, soltas ao acaso pela encosta abaixo, pareciam grandes pedras talhadas, de um estaleiro abandonado, que aos poucos se fossem enterrando no chão. Quando Maria desapareceu na fundura cinzenta de um vale, Jesus, de joelhos, gritou, e todo o seu corpo lhe ardia como se estivesse a suar sangue, Pai, meu pai, por que me abandonaste, que isto era o que o pobre 63
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rapaz sentia, abandono, desespero, a solidão infinda de um outro deserto, nem pai, nem mãe, nem irmãos, um caminho de mortos principiado. De longe, sentado no meio das ovelhas e confundido com elas, o pastor olhava-o.
Passados dois dias, Jesus foi-se embora de casa. Durante esse tempo foram contadas as palavras que pronunciou e as noites passou-as em claro, apenas porque não podia dormir. Imaginava a horrível matança, os soldados entrando nas casas e rebuscando os berços, as espadas golpeando ou cravando-se nos tenros corpinhos descobertos, as mães em loucos gritos, os pais bramindo como touros acorrentados, e imaginava-se a si próprio também, numa cova que nunca vira, e nesses momentos, a espaços, como densas e lentas vagas que o submergissem, sentia o desejo inexplicável de estar morto, de não estar vivo, ao menos. Obsidiava-o uma pergunta que não fizera à mãe, quantas haviam sido as crianças mortas, na sua ideia tinham sido muitas, umas sobre as outras amontoadas, como cordeiros degolados e atirados a monte, à espera da grande fogueira que os iria consumir e levar ao céu feitos em fumo. Porém, não tendo perguntado na altura da revelação, parecia-lhe agora feia acção de mau gosto, se então a expressão já se usasse, ir-se à mãe e dizer, Ó mãe, esqueci-me de perguntar-te no outro dia quantos tinham sido os putos que passaram desta a melhor vida lá em Belém, e ela responderia, Ai filho, não penses nisso, que nem a trinta chegaram, e se eles morreram foi porque o Senhor assim quis, que estava no seu poder evitá-lo se conviesse. A si mesmo, incessantemente, Jesus perguntava, Quantos, olhava os irmãos e perguntava, Quantos, queria saber que quantidade de corpos mortos fora preciso pôr no outro prato para que o fiel da balança declarasse equilibrada a sua vida salva. Na manhã do segundo dia, Jesus disse à mãe, Não tenho paz nem descanso nesta casa, fica com os meus irmãos, que eu vou partir. Maria levantou as mãos ao céu, chorosa e escandalizada, Que é isto, que é isto, abandonar um filho primogénito a sua mãe viúva, onde é que já se viu, adeus mundo cada vez a pior, e porquê, porquê, se esta é a tua casa e a tua família, como vamos nós viver se aqui não estás, Tiago tem só menos um ano que eu, ele proverá, como eu teria de prover faltando o teu marido, O meu marido era teu pai, Não quero falar dele, não quero falar de mais nada, dá-me a tua bênção para a viagem, se quiseres, eu vou de qualquer maneira, E para onde queres tu ir, filho meu, Não sei, talvez a Jerusalém, talvez a Belém, para ver a terra onde nasci, Mas lá ninguém te conhece, Ainda bem para mim, diz-me, mãe, o que achas que me fariam se soubessem quem eu sou, Cala-te, que te ouvem os teus irmãos, Um dia também eles saberão a verdade, E agora, por esses caminhos, com os romanos que andam à procura dos guerrilheiros de Judas, vais ao encontro dos perigos, Os romanos não são piores que os soldados do outro Herodes, decerto não virão sobre mim de espada em punho para me matarem nem me espetarão numa cruz, não fiz nada, sou inocente, Teu pai também o era, e vê lá o que sucedeu, Teu marido morreu inocente, mas não viveu inocente, Jesus, o demónio fala pela tua boca, Como podes tu saber que não é Deus o que pela minha boca fala, Não pronunciarás o nome do Senhor em vão, Ninguém pode saber quando o nome de Deus é pronunciado em vão, não o sabes tu, não o sei eu, só o Senhor fará a distinção e nós não compreenderemos as suas razões, Meu filho, Diz, Não sei onde foste, tão novo, buscar essas ideias, essa ciência, E eu não saberia dizer-to, talvez os homens nasçam com a verdade dentro de si e só não a digam porque não acreditam que ela seja a verdade, É verdade que te queres ir embora, É, E