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voltas, Não sei, Se quiseres, se isso te atormenta, vai a Belém, vai a Jerusalém, ao Templo, fala com os doutores, pergunta-lhes, eles te iluminarão, e tu voltarás para a tua mãe e para os teus irmãos que precisam de ti, Não prometo voltar, E de que viverás, teu pai não durou o bastante para ensinar-te o ofício todo, Trabalharei no campo, farei de pastor, pedirei aos pescadores que me deixem ir com eles ao mar, Não queiras ser pastor, Porquê, Não sei, é um sentir meu, O que tiver de ser, serei, e agora, minha mãe, Não podes ir assim, tenho de preparar-te comida para o caminho, dinheiro há pouco, mas algum se arranjará, levas o alforge do teu pai, felizmente que ele o deixou ficar, Levarei a comida, mas o alforge não, É o único que temos em casa, teu pai não tinha lepra nem sarna que se te peguem, Não posso, Um dia hás-de chorar por teu pai e não o terás, Já chorei, Chorarás mais, e então não quererás saber que culpas ele teve, a estas palavras da mãe Jesus já não respondeu. Os irmãos mais velhos aproximaram-se dele, perguntaram, Vais-te mesmo embora, nada sabiam das razões secretas da conversa entre a mãe e ele, e Tiago disse, Gostava bem de ir contigo, a este apetecia-lhe a aventura, a viagem, o risco, um horizonte diferente, Tens de ficar, respondeu Jesus, alguém deverá 64

José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo

cuidar da nossa mãe viúva, saiu-lhe a palavra sem querer, ainda mordeu o lábio como para retê-la, mas o que não pôde reter foram as lágrimas, a lembrança viva do pai, inesperada, atingira-o como um jorro de luz insuportável. Foi depois de terem comido, toda a família reunida, que Jesus partiu.

Despediu-se dos irmãos, um por um, despediu-se da mãe que chorava, disse-lhe, sem compreender porquê, Duma maneira ou doutra, sempre voltarei, e, acomodando o alforge ao ombro, atravessou o pátio e abriu a cancela que dava para a rua. Ali parou, como se reflectisse no que estava a ponto de fazer, deixar a casa, a mãe, os irmãos, quantas e quantas vezes, no limiar duma porta ou duma decisão, um súbito e novo argumento, ou que a ansiedade do momento como tal configurou, nos faz emendar a mão, dar o dito por não dito. Assim o pensou também Maria, e já uma jubilosa surpresa se lhe vinha espelhando na cara, mas foi sol de pouca dura, porque o filho, antes de voltar atrás, pousou o alforge no chão, ao cabo duma longa pausa durante a qual parecera debater no seu íntimo um problema de resolução difícil. Jesus passou entre os seus sem os olhar e entrou em casa. Quando tornou a sair, instantes depois, trazia na mão as sandálias do pai. Calado, mantendo os olhos baixos, como se o pudor ou uma escondida vergonha não o deixassem enfrentar-se com outro olhar, meteu as sandálias no alforge e, sem mais palavra ou gesto, saiu. Maria correu para a porta, foram com ela todos os filhos, os mais velhos dando-se o ar de não dar muita importância ao caso, mas não houve acenos de despedida porque Jesus nem uma só vez se voltou para trás. Uma vizinha que, passando, presenciou a cena, perguntou, Aonde vai o teu filho, Maria, e Maria respondeu, Arranjou trabalho em Jerusalém, vai lá ficar uns tempos, descarada mentira é ela, como sabemos, mas isto de mentir e dizer a verdade tem muito que se lhe diga, o melhor é não arriscar juízos morais peremptórios porque, se ao tempo dermos tempo bastante, sempre o dia chega em que a verdade se tornará mentira e a mentira se fará verdade. Nessa noite, quando todos na casa dormiam, menos Maria que cismava em como e onde estaria àquela hora o filho, se a salvo num caravançarai, se a coberto duma árvore, se entre as pedras dum barrocal tenebroso, se em poder dos romanos, que o Senhor o não permita, ouviu ela ranger a cancela da rua, e o coração deu-lhe um salto à boca, É Jesus que volta, pensou, a alegria deixou-a, no primeiro momento, paralisada e confusa, Que devo fazer, não queria ir abrir-lhe a porta assim com modos como de triunfadora, Afinal, tanta crueza contra a tua mãe e nem ao menos uma noite aguentaste fora, seria uma humilhação para ele, o mais próprio era ficar quieta e calada, fingir que dormia, deixá-lo entrar, e se ele quiser deitar-se de mansinho na esteira sem dizer, Aqui estou, fingirei amanhã assombro perante o regresso do filho pródigo, que não é por serem breves as ausências que a alegria será menor, afinal a ausência é também uma morte, a única e importante diferença é a esperança. Mas ele tarda tanto a chegar à porta, quem sabe se nos derradeiros passos se deteve e hesitou, ora este pensamento não o pôde Maria suportar, ali está a frincha da porta por onde poderá ver sem ser vista, terá tempo de voltar à esteira se o filho se decidir a entrar, irá a tempo de retê-lo se ele se arrepende e volta para trás. Nos bicos dos pés, descalça, Maria aproximou-se e espreitou. A noite estava de lua, o chão do pátio refulgia como água. Um vulto alto e negro movia-se lentamente, avançava em direcção à porta, e Maria, mal o viu, levou as mãos à boca para não gritar. Não era o filho, era, enorme, gigantesco, imenso, o mendigo, coberto de farrapos como da primeira vez e também como da primeira vez, agora quiçá por efeito do luar, subitamente vestido de trajes sumptuosos que um sopro poderoso agitava. Maria, apavorada, segurava a porta, Que quer ele, que quer ele, murmuravam os lábios trémulos, e de repente não soube o que pensar, o homem que dissera ser um anjo desviou-se para um lado, estava rente à porta mas não entrava, apenas o que se ouviu foi a sua respiração e logo um ruído como de rasgamento, como se uma ferida inicial da terra estivesse a ser repuxada cruelmente até se tornar em boca abissal. Maria não precisava abrir nem perguntar para saber o que acontecia por trás da sua porta. O vulto maciço do anjo tornou a aparecer, durante um rápido instante tapou com o seu grande corpo todo o campo de visão de Maria, e depois, sem um olhar para a casa, afastou-se em direcção à cancela, levando consigo, inteira da raiz à folha mais extrema, a planta enigmática que havia nascido, treze anos antes, no sítio onde a tigela fora enterrada.