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A cancela abriu-se e fechou-se, entre um movimento e outro o anjo transformou-se e apareceu o mendigo, sumiu-se, quem quer que fosse, do outro lado do muro, as longas folhagens arrastando atrás de si como uma serpente emplumada, agora sem sombra de ruído, como se o que sucedera não tivesse sido mais que sonho e imaginação. Maria abriu a porta devagar e, receosa, assomou. O mundo, desde o alto e inacessível céu, era todo claridade. Ali perto, rente à parede da casa, estava o negro buraco 65

José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo

donde a planta fora arrancada, e, a partir do bordo, em direcção à cancela, um rasto de luz maior cintilava como uma via láctea, se esse nome tinha então, que o de Estrada de Santiago é que não pode ser, pois quem o nome lhe há-de vir a dar é por enquanto apenas um rapazito da Galileia, mais ou menos da idade de Jesus, sabe Deus onde estarão, um e outro, a estas horas. Maria pensou no filho, mas sem que o coração desta vez se lhe apertasse de medo, nada de mal poderia acontecer-lhe sob um céu assim, belo, sereno, insondável, e esta lua, como um pão só feito de luz, alimentando as fontes e as seivas da terra. Com a alma tranquila, Maria atravessou o pátio, pisando sem temor as estrelas do chão, e abriu a cancela. Olhou para fora, viu que o rasto acabava logo adiante, como se a potência iridescente das folhas se houvesse extinguido ou, delírio novo da fantasia desta mulher que já não poderá invocar a desculpa de estar grávida, como se o mendigo tivesse retomado a figura do anjo, usando enfim, por se tratar duma ocasião especial, as suas asas. Maria ponderou em seu íntimo estes raros sucessos e achou-os simples, naturais e justificados, tanto como estar vendo as suas próprias mãos ao luar. Voltou então para casa, tomou do gancho da parede a candeia e foi alumiar a larga cova deixada pela planta arrancada. No fundo estava a tigela vazia. Meteu a mão no buraco e tirou-a para fora, era apenas a tigela comum de que se lembrava, só com um pouquinho de terra dentro, mas apagados os seus lumes, um prosaico utensílio doméstico regressado às suas funções originais, de agora em diante tornará a servir ao leite, à água ou ao vinho, consoante o apetite e as posses, bem certo é o que se tem dito, que cada pessoa tem a sua hora e cada coisa o seu tempo. Jesus gozou do abrigo de um tecto nesta sua primeira noite de viajante. O crepúsculo saiu-lhe ao caminho à vista dum pequeno povoado que está logo antes da cidade de Jenin, e a sua sorte, que tão maus anúncios lhe tem andado a prometer e cumprir desde que nasceu, quis, por esta vez, que os moradores da casa onde, sem muita esperança, se apresentou a pedir pousada, fossem de gente compassiva, daquela que levaria o resto da vida com remorsos se deixasse um rapazito como este ao sereno da noite, demais em época tão perturbada de guerras e assaltos, quando por um nada se crucificam almas e se acutilam crianças inocentes. Jesus declarou aos seus bondosos hospedeiros que vinha de Nazaré e ia a Jerusalém, porém não repetiu a mentira envergonhada que ainda ouvira da boca da mãe, de ir trabalhar num ofício, apenas disse que levava recado de interrogar os doutores do Templo sobre um ponto da Lei que à sua família muito interessava. Admirou-se o dono da casa de missão de tal responsabilidade ter sido entregue a mancebo tão jovem, se bem que, como claramente se percebia, já entrado na maturidade religiosa, e Jesus explicou que assim tivera de ser, uma vez que era ele o mais velho varão da família, porém sobre o pai não disse uma só palavra. Ceou com os da casa e depois foi dormir debaixo do alpendre do pátio, porque não havia ali melhores cómodos para hóspedes de passagem. A meio da noite o sonho voltou a acometê-lo, mas com diferença em relação ao que vinha sonhando, e foi que o pai e os soldados não se aproximaram tanto, nem sequer o focinho do cavalo apareceu por trás da esquina, mas que não se iluda quem julgar que por isto foram menores a agonia e o pavor, ponhamo-nos no lugar de Jesus, sonhar que o nosso próprio pai, aquele que nos deu o ser, vem aí de espada nua para nos matar. Ninguém na casa deu pela paixão que a poucos passos se representava, Jesus, mesmo dormindo, já aprendia a governar o medo, a consciência acossada punha-lhe, em último recurso, a mão na boca, e os gritos vibravam terrivelmente, mas em silêncio, dentro da cabeça apenas. Na manhã seguinte, Jesus partilhou da primeira refeição do dia, agradecendo e louvando depois os seus benfeitores com uma compostura tão séria e palavras tão apropriadas que toda a família, sem excepção, se sentiu, por momentos, como participando da inefável paz do Senhor, não obstante não passarem todos eles de uns desconsiderados samaritanos. Despediu-se Jesus e partiu, levando nos ouvidos a última palavra proferida pelo dono da casa, foi ela, Bendito sejas tu, Senhor nosso Deus, rei do universo, que diriges os passos do homem, ao que ele respondera abençoando aquele mesmo Senhor, Deus e Rei que provê a todas as necessidades, demonstração que a experiência da vida vem fazendo todos os dias persuasivamente, conforme a justíssima regra da proporção directa que manda dar mais a quem mais tiver. O que faltava do caminho para chegar a Jerusalém não foi tão fácil. Em primeiro lugar, há samaritanos e samaritanos, o que quer dizer que já neste tempo uma andorinha não chegava para fazer uma primavera, precisando-se, quando menos, duas, das andorinhas falamos, não das primaveras, com a condição de serem macho e fêmea férteis e terem descendência. As portas a que Jesus foi bater não voltaram a abrir-se e o remédio do viajante foi dormir por aí, sozinho, uma vez, debaixo duma figueira, dessas largas e rasteirinhas como uma saia rodada, outra vez protegido 66

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por uma caravana a que se juntara e que, estando cheio o caravançarai próximo, tivera, felizmente para Jesus, de assentar o arraial em campo aberto. Dissemos felizmente porque, neste meio-tempo, quando escoteiro atravessava uns desertos montes, foi o pobre pequeno assaltado por dois maleantes, cobardes e sem perdão, que lhe roubaram o pouco dinheiro que tinha, sendo portanto causa de não poder acolher-se Jesus à segurança das estalagens, as quais, segundo as leis de um são comércio, não dão ponto sem nó nem tecto sem pago. Lástima foi, se lá estivesse alguém para apiedar-se, olhar o desamparo do pobrezinho quando os ladrões se foram, ainda a rir-se dele, com todo aquele céu por cima e as montanhas cercando, o infinito universo desprovido de significação moral, povoado de estrelas, ladrões e crucificadores. E que não nos contraponham, por favor, o argumento de que um mocinho de treze anos nunca teria a sabença científica ou a costela filosófica, sequer a mera experiência de vida, que tais reflexões pressuporiam, e que este, em especial, apesar de informado nos estudos da sinagoga e de alguma declarada agilidade mental, sobretudo nos diálogos em que foi parte, não terá justificado, em ditos e em feitos, a particular atenção de que o fizemos objecto. Filhos de carpinteiros é o que não falta nestas terras, tão-pouco faltam filhos de crucificados, mas, supondo que outro deles tivesse sido o escolhido, não duvidemos que, qualquer que fosse ele, tanta abundância de matérias aproveitáveis nos teria dado esse como nos está este dando. Em primeiro lugar porque, como já não é segredo para ninguém, todo o homem é um mundo, quer pelas vias do transcendente, quer pelos caminhos do imanente, e em segundo lugar porque esta terra sempre foi distinta das outras, basta ver a quantidade de gente de alta, média ou baixa condição que aqui andou pregando e profetizando, a principiar em Isaías e a acabar em Malaquias, nobres, sacerdotes, pastores, de tudo tem havido um pouco, por isso convém que sejamos prudentes em nossas opiniões, os humildes começos do filho de um carpinteiro não nos dão o direito de proferir juízos prematuros, que, ao parecerem definitivos, podem comprometer, desde logo, uma carreira. Este rapaz que vai a caminho de Jerusalém, quando a maioria dos da sua idade ainda não arriscam um pé fora da porta, talvez não seja exactamente uma águia de perspicácia, um portento de inteligência, mas é merecedor do nosso respeito, tem, como ele próprio declarou, uma ferida na alma, e, não lhe consentindo a sua natureza esperar que lha sarasse o simples hábito de viver com ela, até chegar a fechá-la essa cicatriz benévola que é não pensar, foi à procura do mundo, quem sabe se para multiplicar as feridas e fazer, com todas elas juntas, uma única e definitória dor. Porventura parecem tais suposições inadequadas, não só à pessoa, mas também ao tempo e ao lugar, ousando imaginar sentimentos modernos e complexos na cabeça de um aldeão palestino nascido tantos anos antes de Freud, Jüng, Groddeck e Lacan terem vindo ao mundo, mas o nosso erro, permita-se-nos a presunção, não é nem crasso nem escandaloso, se tivermos em conta o facto de abundarem, nos escritos de que estes judeus fazem alimento espiritual, exemplos tais e tantos que nos autorizam a pensar que um homem, seja qual for a época em que viva ou tenha vivido, é mentalmente contemporâneo doutro homem duma outra época qualquer. As únicas e indubitáveis excepções conhecidas foram Adão e Eva, não por terem sido o primeiro homem e a primeira mulher, mas porque não tiveram infância. E não venham cá a biologia e a psicologia protestar que na mentalidade de um homem de Cromagnon, para nós inimaginável, já estavam principiados os caminhos que tinham de levar à cabeça que hoje carregamos sobre os ombros, é um debate que aqui nunca poderia caber, porquanto daquele mesmo homem de Cromagnon não se fala no livro do Génesis, que é a única lição sobre os começos do mundo por onde Jesus aprendeu. Distraídos por estas reflexões, não de todo despiciendas em relação às essencialidades do evangelho que vimos explicando, esquecemo-nos de acompanhar, como seria nosso dever, o que ainda faltava da viagem do filho de José a Jerusalém, à vista da qual agora mesmo acaba de chegar, sem dinheiro, mas a salvo, com os pés castigados da longa jornada, mas tão firme de coração como quando saiu a porta de sua casa, há três dias. Não é esta a primeira vez que aqui vem, por isso não se lhe exalta o coração mais do que a conta que se espera de um devoto para quem o seu deus já se tornou familiar ou disso vai a caminho. Deste monte, chamado Gethsemane, que é o mesmo que dizer das Oliveiras, avista-se, desdobrado magnificamente, o discurso arquitectónico de Jerusalém, templo, torres, palácios, casas de viver, e tão próxima a cidade parece estar de nós que temos a impressão de lhe chegar com os dedos, sob condição de haver subido a febre mística tão alto que o crente e padecente dela acabe por confundir as fracas forças do seu corpo com a potência inexaurível do espírito universal. A tarde vai no fim, o sol descai para o lado do mar distante. Jesus começou a descer para o vale, a si mesmo 67