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José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo

perguntando onde dormirá esta noite, se dentro, se fora da cidade, das outras vezes que veio com o pai e a mãe, no tempo da Páscoa, ficou a família em tendas fora dos muros, mandadas armar benevolamente pelas autoridades civis e militares para acolhimento dos peregrinos, separados todos, nem seria preciso dizê-lo, os homens com os homens, as mulheres com as mulheres, os menores igualmente divididos por sexos. Quando Jesus chegou às muralhas, já com o primeiro ar de noite, estavam as portas a ser fechadas, ainda lhe permitiram os guardiões que entrasse, atrás de si retumbaram as trancas nos grossos madeiros, tivesse Jesus alguma aflita culpa na consciência, daquelas que em tudo vão encontrando indirectas alusões aos erros cometidos, e talvez lhe viesse à ideia uma armadilha no momento de fechar-se, uns dentes de ferro filando a canela da presa, um casulo de baba envolvendo a mosca. Porém, aos treze anos, os pecados não podem ser muitos nem temíveis, ainda não é a altura de matar ou roubar, de levantar falso testemunho, de desejar a mulher do próximo, nem a sua casa, nem o seu campo, nem o seu escravo, nem a sua escrava, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem nada que lhe pertença, e, assim sendo, este moço vai puro e sem mancha de erro próprio, embora leve já perdida a inocência, que não é possível ver a morte e continuar como antes. As ruas vão ficando desertas, é a hora da ceia das famílias, só quedam ainda fora os pedintes e vagabundos, mas mesmo esses já se vão recolhendo, têm lá as suas guildas, os seus fojos corporativos, daqui a pouco começarão a percorrer a cidade as patrulhas de soldados romanos, à procura dos fautores de desordem que até à própria capital do reino de Herodes Ântipas vêm cometer os seus malefícios e iniquidades, apesar dos suplícios que os esperam se são apanhados, como em Séforis se viu. Ao fundo da rua, aparece uma dessas rondas da noite alumiando-se com archotes, desfilando entre um tinir de espadas e de escudos, a compasso dos pés calçados de sandálias de guerra. Oculto num desvão, o rapaz esperou que a tropa desaparecesse, depois foi à procura de um sítio para dormir. Veio a encontrá-lo, como calculava, nas sempiternas obras do Templo, um espaço entre duas grandes pedras já aparelhadas, por cima das quais uma grande laje estava a fazer as vezes de tecto. Ali comeu o último bocado de pão duro e bafiento que lhe restava, acompanhando-o com uns poucos figos secos que desencantou no fundo do alforge. Tinha sede, mas resignou-se a passar sem beber. Enfim, estendeu a esteira, tapou-se com a pequena manta que fazia parte da sua bagagem de viajante, e, todo enroscado para proteger-se do frio que entrava de um lado e do outro do precário abrigo, pôde adormecer. Estar em Jerusalém não o impediu de sonhar, mas não foi benesse de pouca monta que, talvez por causa da tão próxima presença de Deus, o sonho se tivesse limitado à repetição das conhecidas cenas, confundidas com o desfile da rolda que tinha encontrado. Acordou quando o sol mal tinha acabado de nascer. Arrastou-se para fora do buraco, frio como um túmulo, e, enrolado na manta, olhou na sua frente o casario de Jerusalém, as casas baixinhas, de pedra, tocadas pela luz rosada. Então, com uma solenidade maior, por serem proferidas, afinal, pela boca da criança que ainda é, disse as palavras da bênção, Graças te dou, Senhor, nosso Deus, rei do universo, que, pelo poder da tua misericórdia, assim me restituíste, viva e constante, a minha alma. Certos momentos há da vida que deviam ficar fixados, protegidos do tempo, não apenas consignados, por exemplo, neste evangelho, ou em pintura, ou modernamente em foto, cine e vídeo, o que interessava mesmo era que o próprio que os viveu ou tinha feito viver pudesse permanecer para todo o sempre à vista dos seus vindouros, como seria, neste dia de hoje, irmos daqui até Jerusalém para vermos, com os nossos olhos visto, este rapazito, Jesus filho de José, enroladinho na curta manta de pobre, a olhar as casas de Jerusalém e a dar graças ao Senhor por não ter sido ainda desta vez que perdeu a alma. Estando a sua vida no princípio, que são treze anos, é de prever que o futuro lhe haja reservado horas mais alegres ou tristes que esta, mais felizes ou desgraçadas, mais amenas ou trágicas, mas este é o instante que escolheríamos para nós, a cidade adormecida, o sol parado, a luz intangível, um rapazinho a olhar as casas, enrolado numa manta e com um alforge aos pés, e o mundo todo, o de perto e o de longe, suspenso, à espera. Não é possível, ele próprio já se moveu, o instante veio e passou, o tempo leva-nos até onde uma memória se inventa, foi assim, não foi assim, tudo é o que dissermos que foi. Jesus caminha agora pelas estreitas ruas que se vão enchendo de gente, por enquanto é cedo para ir ao Templo, os doutores, como em todas as épocas e lugares, só começam a aparecer mais tarde. Já não sente frio, mas o estômago dá sinais, dois figos que ainda tinha só serviram para abrir-lhe os fluxos da saliva, o filho de José tem fome. Agora, sim, faz-lhe falta o dinheiro que lhe roubaram os malvados, pois a vida de cidade não é como a boa-vai-ela de andar assobiando pelos campos à mira do que neles 68