José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo
teriam deixado os lavradores que cumprem as leis do Senhor, verbi gratia, Quando procederes à ceifa do teu campo, e te esqueceres de algum feixe, não voltes atrás para o levar, quando varejares as tuas oliveiras, não voltes a colher o resto que ficou nos galhos, quando vindimares a tua vinha, não rabisques o que ficou, a tudo isto deverás deixar para que o recolham o estrangeiro, o órfão e a viúva, lembra-te de que foste escravo na terra do Egipto. Ora, por ser cidade maior, e apesar de ter sido nela que Deus mandou edificar a sua morada terrestre, a Jerusalém não chegam estes humanitários regulamentos, razão por que, para quem não traga dinheiros na bolsa, nem trinta, nem três, o remédio sempre será pedir, com o provável risco de se ver repelido, por importuno, ou então roubar, com o certíssimo perigo de vir a sofrer castigo de flagelação e cárcere, senão punição pior. Roubar, este rapaz não pode, pedir, este rapaz não quer, vai pousando apenas os olhos aguados nas pilhas de pães, nas pirâmides de frutos, nas comidas cozinhadas expostas em bancas ao longo das ruas, e quase desmaia, como se todas as insuficiências nutritivas destes três dias, descontando a mesa do samaritano, se tivessem reunido nesta hora dolorosa, é verdade que o seu destino é o Templo, mas o corpo, ainda que defendam o contrário os partidários do jejum místico, receberá melhor a palavra de Deus se o alimento tiver fortalecido nele as faculdades do entendimento. Felizmente, um fariseu que vinha passando deu pelo desfalecido moço e dele se apiedou, o injusto futuro encarregar-se-á de criar uma péssima reputação a esta gente, mas no fundo eram boas pessoas, como neste caso ficou provado, Tu quem és, perguntou ele, e Jesus respondeu, Sou de Nazaré de Galileia, Tens fome, o rapaz baixou os olhos, não precisava falar, lia-se-lhe na cara, Não tens família, Sim, mas vim sozinho, Fugiste de casa, Não, e realmente não tinha fugido, recordemos que a mãe e os irmãos vieram despedir-se dele, com muito amor, à porta da casa, o não se ter voltado ele para trás uma única vez não era sinal de ir fugido, assim são as nossas palavras, dizer um Sim ou uín Não é, de tudo, o mais simples e, em princípio, o mais convincente, mas a pura verdade mandaria que se começasse por dar uma resposta assim meio dubitativa, Bom, fugir, fugir, o que se chama fugir, não fugi, contudo, e neste ponto teríamos de voltar a ouvir toda a história, o que, tranquilizemo-nos, não sucederá, em primeiro lugar porque o fariseu, não tendo de voltar a aparecer, não precisa conhecê-la, em segundo lugar porque a conhecemos melhor nós do que ninguém, basta pensar no pouco que sabem umas das outras as personagens mais importantes deste evangelho, veja-se que Jesus não sabe tudo da mãe e do pai, Maria não sabe tudo do marido e do filho, e José, estando morto, não sabe nada de nada. Nós, pelo contrário, conhecemos tudo quanto até hoje foi feito, dito e pensado, quer por eles quer pelos outros, embora tenhamos de proceder como se o ignorássemos, de certa maneira somos o fariseu que perguntou, Tens fome, quando a pálida e emagrecida cara de Jesus, só por si, significava, Não me perguntes, dá-me de comer. Foi o que fez, por fim, o compadecido homem, comprou dois pães, que ainda vinham quentes do forno, e uma tigela de leite, e sem dizer palavra entregou-os a Jesus, acontecendo que na passagem de um para o outro um pouco do líquido se lhes derramou sobre as mãos, então, num gesto igual e simultâneo, vindo certamente da distância dos tempos naturais, ambos levaram a mão molhada à boca para sorver o leite, gesto como o de beijar o pão quando caiu ao chão, é pena não voltarem a encontrar-se nunca mais estes dois, se tão formoso e simbólico pacto parecia haverem firmado. Foi-se o fariseu à sua vida, mas antes tirou de dentro da bolsa duas moedas, dizendo, Toma este dinheiro e volta para casa, o mundo ainda é grande de mais para ti. O filho do carpinteiro segurava nas mãos a tigela e o pão, de súbito deixara de ter fome, ou tinha-a, mas não a sentia, olhava o fariseu que se afastava e só então é que agradeceu, porém em voz tão baixa que o outro não o poderia ter ouvido, fosse ele homem de esperar agradecimentos e pensaria que tinha feito o bem a um garoto ingrato e sem educação. Ali mesmo, no meio da rua, Jesus, cujo apetite regressara de um salto, comeu o seu pão e bebeu o seu leite, depois foi-se a entregar a tigela vazia ao vendedor, que lhe disse, Está paga, fica com ela, É costume em Jerusalém comprar o leite com as tigelas, Não, mas esse fariseu quis assim, nunca se sabe o que um fariseu tem na cabeça, Então posso levá-la, Já te disse, está paga. Jesus envolveu a tigela na manta e meteu-a no alforge enquanto pensava que tinha de dar atenção, a partir de agora, à maneira de lidar com ela, estes barros são frágeis, quebradiços; não passam de uma pouca de terra a que a fortuna deu, precariamente, consistência, como ao homem, afinal. Alimentado o corpo, despertado o espírito, Jesus orientou para o Templo os seus passos.
Havia já muita gente na esplanada que entestava com a íngreme escadaria de acesso. Dos 69
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dois lados, ao longo dos muros, encontravam-se as tendas dos bufarinheiros, outras onde se vendiam os animais para o sacrifício, aqui e além, dispersos, os cambistas com as suas bancas, grupos que conversavam, gesticulantes mercadores, guardas romanos a pé e a cavalo vigiando, liteiras a ombros de escravos, e também os dromedários, os jumentos ajoujados de carga, por toda a parte um vozear frenético, agora logo débeis balidos de cordeiros e cabritos, alguns que iam transportados ao colo ou às costas, como crianças cansadas, outros, arrastados, de corda ao pescoço, mas todos a caminho da morte no cutelo e da consumição do fogo. Jesus passou pelo balneário para purificar-se, depois subiu a escadaria e, sem parar, atravessou o Átrio dos Gentios. Entrou no Átrio das Mulheres pela porta entre a Sala dos Óleos e a Sala dos Nazarenos, e encontrou o que tinha vindo buscar, os anciãos e os escribas que, segundo o antigo costume, ali dissertavam sobre a Lei, respondiam a questões e davam conselhos. Havia alguns grupos, o rapaz aproximou-se do menos numeroso no preciso momento em que um homem levantava a mão para fazer uma pergunta. O escriba assentiu com um sinal e o homem disse, Explica-me, peço-te, se devemos entender, palavra por palavra, sentido por sentido, como está escrito, as leis que o Senhor deu a Moisés no Monte Sinai, quando prometeu fazer reinar a paz na nossa terra e que ninguém perturbaria o nosso sono, quando anunciou que faria desaparecer de entre nós os animais nocivos e que a espada não passaria pela nossa terra, e também que, perseguindo nós os nossos inimigos eles cairiam sob a nossa espada, cinco dos vossos perseguirão um cento, e cem dos vossos perseguirão dez mil, disse o Senhor, e os vossos inimigos cairão diante da vossa espada. O