José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo
contenta com prevalecer sobre todas as coisas, ela é o que faz que tudo seja o que é, Mas tu próprio disseste que a desobediência de Adão é causa de que não conheçamos o projecto que Deus tinha concebido para ele, Assim é, segundo a razão, mas na vontade de Deus, criador e regedor do universo, estão contidas todas as vontades possíveis, a sua, mas também a de todos os homens nascidos e por nascer, Se isso fosse como dizes, interveio Jesus, numa súbita iluminação, cada um dos homens seria uma parte de Deus, Provavelmente, mas a parte representada por todos os homens juntos seria como um grão de areia no deserto infinito que Deus é. O homem presunçoso que até aí o escriba havia sido desapareceu. Está sentado no chão, como antes, na sua frente, em redor, os assistentes olham-no com um sentimento em que há tanto de respeito quanto de temor, como diante de um mago que, involuntariamente, tivesse convocado e feito aparecer forças de que, a partir deste momento, só poderia ser súbdito. Descaídos os ombros, estiradas as feições, as mãos abandonadas sobre os joelhos, todo o corpo dele parecia pedir que o deixassem entregue à sua angústia. Os circunstantes começaram a levantar-se, alguns encaminharam-se para o Átrio dos Israelitas, outros chegavam-se aos grupos onde prosseguiam debates. Jesus disse, Não respondeste à minha pergunta. O escriba endireitou lentamente a cabeça, olhou-o com a expressão de quem acabasse de sair de um sonho, e, após um longo, quase insuportável silêncio, disse, A culpa é um lobo que come o filho depois de ter devorado o pai, Esse lobo de que falas já comeu o meu pai, Então só falta que te devore a ti, E tu, na tua vida, foste comido ou devorado, Não apenas comido e devorado, mas vomitado. Jesus ergueu-se e saiu. A caminho da porta por onde tinha entrado, parou e olhou para trás. A coluna de fumo dos sacrifícios subia a direito para o céu e ia dissipar-se e desaparecer nas alturas, como se a aspirassem os gigantescos foles do pulmão de Deus. A manhã estava em meio, a multidão crescia, e no interior do Templo ficava um homem roto e dilacerado pelo vazio, à espera de sentir que se lhe reconstituía o osso do costume, a pele do hábito, para poder responder, daqui a pouco ou amanhã, tranquilamente, a alguém que venha com a ideia de querer saber, por exemplo, se o sal em que a mulher de Lot se transformou tinha sido o sal-gema ou o sal marinho, ou se a embriaguez de Noé foi de vinho branco ou de vinho tinto. Já fora do Templo, Jesus perguntou qual era o caminho para Belém, seu segundo destino, por duas vezes se perdeu na confusão das ruas e da gente, até que encontrou a porta por onde, transportado na barriga da mãe, tinha saído treze anos antes, já prestes a vir ao mundo. Não se suponha, porém, que Jesus pensa este pensamento, é por de mais conhecido que as evidências da obviedade cortam as asas ao pássaro inquieto da imaginação, um exemplo daremos, e basta, olhe o leitor deste evangelho um retrato da sua mãe, que a represente grávida dele, e diga-nos se é capaz de se imaginar ali dentro. Jesus desce em direcção a Belém, poderia agora reflectir nas respostas dadas pelo escriba, não apenas à sua pergunta, às outras antes da sua também, mas o que o perturba é a embaraçosa impressão de que todas as perguntas eram, afinal, uma só, e que a resposta dada a cada uma a todas servia, principalmente a última, que resumia tudo, a fome eterna do lobo da culpa, que eternamente come, devora e vomita. Muitas vezes, graças às debilidades da memória, não sabemos, ou sabemos como quem desejasse esquecê-lo, a causa, o motivo, a raiz da culpa, ou, para falar figuradamente, à maneira do escriba, o fojo donde o lobo saiu para caçar-nos. Jesus sabe-o e é para lá que caminha. Não tem nenhuma ideia do que cá vem fazer, mas ter vindo é como ir avisando para um lado e outro da estrada, Aqui estou, à espera de que alguém lhe saia ao caminho, que queres, castigo, perdão, esquecimento. Como o pai e a mãe haviam feito em seu tempo, parou diante do túmulo de Raquel para orar. Depois, sentindo que se lhe aceleravam as pancadas do coração, seguiu para diante.
As primeiras casas de Belém estavam ali, esta era a entrada da aldeia por onde todas as noites irrompiam, no sonho, o pai assassino e os soldados da companhia, em verdade não parece sítio para tais horrores, já não é apenas o céu que o nega, este céu onde passam nuvens brancas e tranquilas como benévolos acenos de Deus, a própria terra parece dormir ao sol, talvez o melhor fosse dizer, Deixemos as coisas como estão, não removamos os ossos do passado, e, antes que uma mulher, com uma criança ao colo, aparecesse num destes postigos perguntando, A quem procuras, tornar atrás, apagar o rasto dos passos que aqui nos trouxeram e rogar que o movimento perpétuo da peneira do tempo cubra de uma rápida e insondável poeira até a mais ténue memória destes acontecimentos.
Demasiado tarde. Há um momento, quase a roçar a teia, em que a mosca ainda estaria a tempo de escapar à armadilha, mas, se chegou a tocar-lhe, se o visco filou a asa doravante inútil, qualquer movimento apenas servirá para que o insecto mais se enrede e paralise, irremediavelmente 72