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José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo

condenado, mesmo que a aranha desprezasse, por insignificante, esta peça de caça. Para Jesus, o momento já passou. No centro de um largo, onde, a um canto, há uma figueira ramalhuda, vê-se uma pequena construção cúbica que não precisa ser olhada segunda vez para se perceber que é um túmulo.

Aproximou-se dela Jesus, deu-lhe uma vagarosa volta, deteve-se a ler as inscrições meio apagadas que havia numa das faces, e, feito tudo isto, compreendeu que tinha encontrado o que viera procurar.

Uma mulher que atravessava o largo, trazendo uma criança de uns cinco anos pela mão, parou, olhou com curiosidade o forasteiro e perguntou, Donde vens, e como se achasse necessário justificar a pergunta, Não és daqui, Sou de Nazaré de Galileia, Tens família nestes lugares, Não, vim a Jerusalém e, como estava perto, decidi ver como é Belém, Estás de passagem, Sim, volto para Jerusalém quando a tarde principiar a refrescar. A mulher levantou a criança, sentou-a no braço esquerdo, disse, Que o Senhor fique contigo, e fez um movimento para retirar-se, mas Jesus reteve-a perguntando, Este túmulo, de quem é. A mulher apertou a criança contra o peito, como se a quisesse proteger de alguma ameaça, e respondeu, São vinte e cinco meninos que foram mortos há muitos anos, Quantos, Vinte e cinco, já te disse, Falo dos anos, Ah, vai para catorze, São muitos, Devem ser, calculo, mais ou menos os que tu tens, Assim é, mas eu estava a falar dos meninos, Ah, um deles era meu irmão, Um irmão teu está ali dentro, Sim, E esse que levas ao colo, é teu filho, É o meu primogénito, Por que é que os meninos foram mortos, Não se sabe, nessa altura eu tinha só sete anos, Mas com certeza ouviste contar aos teus pais e às outras pessoas crescidas, Não era preciso, eu mesma vi serem mortos alguns, O teu irmão, também, Também o meu irmão, E quem foi que os matou, Apareceram uns soldados do rei à procura de meninos varões até aos três anos e mataram-nos a todos, E dizes que não se sabe porquê, Nunca se soube, até hoje, E depois da morte de Herodes, não tentaram averiguar, não foram ao Templo pedir aos sacerdotes que indagassem, Isso não sei, Se os soldados fossem romanos, ainda se percebia, mas assim, o nosso próprio rei a mandar matar os seus súbditos, meninos de três anos, alguma razão há-de ter havido, A vontade dos reis não é para o nosso entendimento, fique o Senhor contigo e te proteja, Já não tenho três anos, À hora da morte os homens têm sempre três anos, disse a mulher, e afastou-se. Quando ficou sozinho, Jesus ajoelhou-se no chão, ao lado da pedra que fechava a entrada do túmulo, tirou do alforge um resto de pão que lhe ficara, já endurecido, esfarelou um bocado nas palmas das mãos e espalhou-o ao longo da porta, como uma oferenda às invisíveis bocas dos inocentes. No instante em que o fazia, apareceu, saída da esquina mais próxima, uma outra mulher, mas esta era muito velha, curvada, que caminhava ajudando-se com um bastão. Confusamente, porque a vista não lhe dava maiores alcances, percebera o gesto do rapaz.

Parou, atenta, de- pois viu-o levantar-se, inclinar a cabeça, como se recitasse uma prece pelo descanso dos infortunados infantes, que, embora seja esse o costume, não nos atreveremos a desejar eterno, por ter-nos falhado a imaginação quando, uma única vez, tentámos representar-nos o que poderia ser isso de descansar eternamente. Jesus acabou o seu responsório e olhou em redor, muros cegos, portas fechadas, apenas, ali parada, uma velha muito velha, vestida com uma túnica de escrava, e demonstração viva, apoiada ao seu bastão, da terceira parte do famoso enigma da esfinge, qual é o animal que anda sobre quatro patas de manhã, duas à tarde e três ao anoitecer, é o homem, respondeu o espertíssimo Édipo, não se lembrou, então, que alguns nem ao meio-dia conseguem chegar, só em Belém, de uma assentada, foram vinte e cinco. A velha veio vindo, veio vindo, e agora está diante de Jesus, torce o pescoço para poder olhá-lo melhor, e pergunta, Procuras alguém. O rapaz não respondeu logo, em boa verdade não andava à procura de pessoas, as que tinha encontrado estão mortas, aqui a dois passos, e nem se podia dizer delas que eram pessoas, uns tantos putos de fraldas e chupeta, chorões e ranhosos, subitamente a morte viera e tornara-os em gigantescas presenças que não cabem em ossários e gavetas, e todas as noites, se há justiça, saem para o mundo a mostrar as feridas mortais, as portas por onde lhes saiu a vida, abertas à ponta de espada, Não, disse Jesus, não ando à procura de ninguém. A velha não se retirou, parecia esperar que ele continuasse, e essa atitude foi o que tirou da boca de Jesus palavras que não tinha pensado dizer, Nasci nesta aldeia, numa cova, e gostava de ver o sítio. A velha recuou um difícil passo, afirmou o olhar tanto quanto podia, e, tremendo-lhe a voz, perguntou, Tu, como te chamas, donde vens, quem são os teus pais. A uma escrava só terá de responder quem quiser, mas o prestígio da última idade, mesmo em inferior condição, tem muita força, aos velhos, todos eles, deve-se responder-lhes sempre, porque, sendo já tão 73

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pouco o tempo que têm para fazer perguntas, extrema crueldade seria deixá-los privados de respostas, lembremo-nos de que uma delas bem pode ser a que esperavam. Chamo-me Jesus e venho de Nazaré de Galileia, disse o rapaz, e outra coisa não anda dizendo desde que saiu de casa. A velha avançou o passo que recuara, E os teus pais, como se chamam, Meu pai chamava-se José, minha mãe é Maria, Quantos anos tens, Vou nos catorze. A mulher olhou em redor, como se buscasse onde sentar-se, mas uma praça em Belém de Judeia não é o mesmo que o jardim de São Pedro de Alcântara, com bancos e vista aprazível para o castelo, aqui sentamo-nos na poeira do chão, quando muito nas soleiras das portas, ou, se há um túmulo, na pedra que se deixa ao lado da entrada para repouso e desafogo dos vivos que vêm chorar os entes queridos, ou ainda, sabe-se lá, dos fantasmas que dos seus próprios túmulos saem para chorar as lágrimas que sobejaram da vida, como é o caso de Raquel, aqui tão perto, em verdade está escrito, É Raquel que chora os seus filhos e não quer ser consolada, porque já não existem, não é preciso ter a argúcia de Édipo para ver que o sítio condiz com a situação e o choro com a causa. A velha sentou-se custosamente na pedra, o rapaz ainda fez um gesto para ajudá-la, mas não foi a tempo, os gestos não totalmente sinceros vão sempre atrasados. Eu conheço-te, disse a velha, Deves estar enganada, respondeu Jesus, eu nunca estive aqui e a ti nunca te vi em Nazaré, As primeiras mãos que te tocaram não foram as de tua mãe, mas as minhas, Como pode isso ser, mulher, O meu nome é Zelomi e fui a tua parteira. No impulso de um instante, assim se demonstrando a autenticidade caracterológica dos movimentos feitos a tempo, Jesus foi ajoelhar-se aos pés da escrava, inconscientemente hesitando entre uma curiosidade que parecia à beira de receber satisfação e um simples dever de polidez social, o dever de manifestar reconhecimento a alguém que, sem mais responsabilidade que ter estado presente na ocasião, nos extraiu de um limbo sem memória para largar-nos numa vida que seria nada sem ela. Minha mãe nunca me falou de ti, disse Jesus, Não tinha de falar, teus pais apareceram em casa de meu amo a pedir ajuda, e como eu tinha experiência, Foi no tempo da matança dos inocentes que estão neste túmulo, Foi, tu tiveste sorte, não te encontraram, Porque morávamos na cova, Sim, ou então porque havíeis partido antes, isso não o cheguei a saber, quando fui para ver o que vos teria sucedido, achei a cova vazia, Lembras-te do meu pai, Sim, lembro-me, nessa altura era um homem novo, boa figura, e uma boa pessoa, Já morreu, Pobre dele, que curta lhe saiu a vida, e tu, sendo o primogénito, por que deixaste a tua mãe, suponho que ainda estará viva, Vim para conhecer este lugar onde nasci, e também para saber dos meninos que foram mortos, Só Deus saberá por que morreram, o anjo da morte, tomando a figura de uns soldados de Herodes, desceu em Belém e condenou-os, Crês então que foi vontade de Deus, Não sou mais do que uma escrava velha, mas, desde que nasci, ouço dizer que tudo quanto tem acontecido no mundo, mesmo o sofrimento e a morte, só pôde acontecer porque Deus, antes, o quis, Assim é que está escrito, Compreendo que Deus queira, um destes dias, a minha morte, mas não a de crianças inocentes, A tua morte decidi-la-á Deus, a seu tempo, a morte dos meninos decidiu-a a vontade de um homem, Pode bem pouco, afinal, a mão de Deus, se não chega para interpor-se entre o cutelo e o sentenciado, Não ofendas ao Senhor, mulher, Quem, como eu, nada sabe, não pode ofender, Hoje, no Templo, ouvi dizer que todo o acto humano, por mais insignificante que seja, interfere com a vontade de Deus, e que o homem só é livre para poder ser castigado, Não é de ser livre que o meu castigo vem, mas de ser escrava, disse a mulher. Jesus calou-se. Mal tinha ouvido as palavras de Zelomi porque o pensamento, como uma súbita fresta, abriu-se para a ofuscante evidência de ser o homem um simples joguete nas mãos de Deus, eternamente sujeito a só fazer o que a Deus aprouver, quer quando julga obedecer-lhe em tudo, quer quando em tudo supõe contrariá-lo. O sol descaía, a sombra maléfica da figueira aproximava-se. Jesus recuou um pouco e chamou a mulher, Zelomi, ela ergueu a custo a cabeça, Que queres, perguntou, Leva-me à cova onde nasci, ou diz-me onde é, se não podes andar, Custa-me caminhar, sim, mas tu não a encontrarias se eu não te levasse lá, É longe, Não, há outras covas, parecem todas iguais, Vamos, Pois sim, vamos, disse a mulher. Em Belém, as pessoas que neste dia viram passar Zelomi e o rapaz desconhecido perguntavam-se umas às outras donde se conheceriam eles. Nunca chegariam a sabê-lo porque a escrava guardou silêncio durante os dois anos que ainda teve de vida, e Jesus não mais voltará à terra em que nasceu. No dia seguinte Zelomi foi à cova onde deixara ficar o rapaz. Não o encontrou. No seu íntimo, ia a contar que assim fosse. Não teriam nada para dizer um ao outro se ele ainda lá estivesse. Muito se tem falado das coincidências de que a vida é feita, tecida e composta, mas quase nada dos encontros que, dia por dia, vão acontecendo 74