José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo
nela, e isso não obstante serem os ditos encontros, quase sempre, os que a mesma vida orientam e determinam, embora, em defesa daquela percepção parcial das contingências vitais, fosse possível argumentar que um encontro é, no seu mais rigoroso sentido, uma coincidência, o que não significa, claro está, que todas as coincidências tenham de ser encontros. No geral dos casos deste evangelho tem havido coincidências avonde, e, quanto aos particulares da vida de Jesus propriamente dita, sobretudo desde que, tendo ele saído de casa, passámos a prestar-lhe uma atenção exclusiva, pode-se observar que não lhe têm faltado os encontros. Deixando de lado a infortunada peripécia com os ladrões de estrada, por não serem ainda futuráveis os efeitos que em futuro próximo e distante ela possa vir a ter, esta primeira viagem independente de Jesus tem-se mostrado assaz rica de encontros, como foi o aparecimento providencial do fariseu filantropo, graças ao qual, não só o por fim fortunoso rapaz logrou tirar a barriga de misérias, como, por ter levado a comer nem mais nem menos que o tempo que levou, chegou ao Templo a boas horas de ouvir as perguntas e escutar as respostas que, por assim dizer, iriam fazer cama à questão que de Nazaré trouxera, sob responsabilidades e culpas, se ainda estamos lembrados. Dizem os entendidos nas regras de bem contar contos que os encontros decisivos, tal como sucede na vida, deverão vir entremeados e entrecruzar-se com mil outros de pouca ou nula importância, a fim de que o herói da história não se veja transformado em um ser de excepção a quem tudo poderá acontecer na vida, salvo vulgaridades. E também dizem que é esse o processo narrativo que melhor serve o sempre desejado efeito de verosimilhança, pois se o episódio imaginado e descrito não é nem poderá tornar-se nunca em facto, em dado da realidade, e nela tomar lugar, ao menos que seja capaz de o parecer, não como no relato presente, em que de modo tão manifesto se abusou da confiança do leitor, levando-se Jesus a Belém para, sem tir-te nem guar-te, dar de caras, mal chegou, com a mulher que esteve de aparadeira no seu nascimento, como se já não tivessem passado das marcas o encontro e os lamirés adiantados pela outra que vinha de filho ao colo, ali de propósito colocada para as primeiras informações. Porém, o mais difícil de acreditar ainda está para vir, depois que a escrava Zelomi tiver acompanhado Jesus até à cova e o deixar lá, que assim o pediu ele, sem contemplações, Deixa-me só, entre estas escuras paredes, quero, neste grande silêncio, escutar o meu primeiro grito, se os ecos podem durar tanto, estas foram as palavras que a mulher julgou ter ouvido e por isso aqui se registam, embora sejam, em tudo, uma ofensa mais à verosimilhança, devendo nós imputá-las, por precaução lógica, à evidente senilidade da anciã. Foi-se embora Zelomi no seu vacilante andar de velha, passo a passo palpando a firmeza do chão com o cajado seguro a mãos ambas, ora, mais bonita acção teria sido a do rapaz se tivesse ajudado a pobre e sacrificada criatura a regressar a casa, mas a juventude é assim, egoísta, presunçosa, e Jesus, que ele saiba, não tem motivos para ser diferente dos da sua idade. Está sentado numa pedra, ao lado, em cima doutra pedra, a candeia acesa alumia debilmente as paredes rugosas, a mancha mais escura dos carvões no sítio da fogueira, as mãos caídas, frouxas, o rosto sério, Nasci aqui, pensava, dormi naquela manjedoura, nesta pedra em que me sento sentaram-se meu pai e minha mãe, aqui estivemos escondidos enquanto na aldeia os soldados de Herodes andavam a matar as crianças, por mais que faça não conseguirei ouvir o grito de vida que dei ao nascer, tão-pouco ouço os gritos de morte dos meninos e dos pais que os viam morrer, nada vem romper o silêncio desta cova onde se juntaram um princípio e um fim, pagam os pais pelas culpas que tiverem, os filhos pelas que vierem a ter, assim me foi explicado no Templo, mas se a vida é uma sentença e a morte uma justiça, então nunca houve no mundo gente mais inocente que aquela de Belém, os meninos que morreram sem culpa e os pais que essa culpa não tiveram, nem gente mais culpada terá havido que meu pai, que se calou quando deveria ter falado, e agora este que sou, a quem a vida foi salva para que conhecesse o crime que lhe salvou a vida, mesmo que outra culpa não venha a ter, esta me matará. Na meia escuridão da caverna, Jesus levantou-se, parecia que queria fugir, mas não deu mais que dois incertos passos, foram-se-lhe abaixo de repente as pernas, as mãos acudiram-lhe aos olhos para suster as lágrimas que rebentavam, pobre rapaz, ali enroscado e torcendo-se no pó como se sentisse uma infinita dor, eis que o vemos sofrendo o remorso daquilo que não fez, mas de que há-de ser, enquanto viva, ó insanável contradição, o primeiro culpado. Este rio de agónicas lágrimas, digamo-lo já, irá deixar para sempre nos olhos de Jesus uma marca de tristeza, um contínuo, húmido e desolado brilho, como se, em cada momento, tivesse acabado de chorar. Passou o tempo, lá fora o sol foi descaindo, tornaram-se mais longas as sombras da terra, prenunciando a grande sombra que do alto descerá com a noite, e a mudança do céu 75