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José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo

até no interior da caverna podia ser notada, as trevas já cercam e sufocam a pequeníssima amêndoa luminosa da candeia, é certo que se lhe está acabando o azeite, assim também será quando o sol estiver para apagar-se, então os homens dirão uns para os outros, Estamos a perder a vista, e não sabem que os olhos já não lhes servem de nada. Jesus dorme agora, rendeu-o o misericordioso cansaço destes dias, a morte terrível do pai, a herança do pesadelo, a confirmação resignada da mãe, e depois a penosa viagem até Jerusalém, o Templo assustador, as palavras sem consolação proferidas pelo escriba, a descida para Belém, o destino, a escrava Zelomi vinda do fundo do tempo para lhe trazer o conhecimento final, não admira que o corpo extenuado tivesse feito tombar consigo o mísero espírito, ambos pareciam repousar, mas já o espírito se move e em sonho faz levantar-se o corpo para que vão ambos a Belém, e ali, no meio da praça, confessem a tremenda culpa, Eu sou, dirá o espírito pela voz do corpo, aquele que trouxe a morte aos vossos filhos, julgai-me, condenai este corpo que aqui vos trago, o corpo de que sou o ânimo e a alma, para que o possais atormentar e torturar, pois sabido é que só pelo castigo e pelo sacrifício da carne se poderá alcançar a absolvição e o prémio do espírito. No sonho estão as mães de Belém com os filhos mortos nos braços, só um deles está vivo e a mãe é aquela mulher que apareceu a Jesus com o filho ao colo, é ela quem responde, Se não podes restituir-lhes a vida, cala-te, diante da morte não se querem palavras. O espírito, humilhando-se, recolheu-se em si mesmo como uma túnica dobrada três vezes, entregando o corpo inerme à justiça das mães de Belém, mas Jesus não virá a saber que poderia levar dali o corpo salvo, era o que a mulher que ainda tinha ao colo o filho vivo se preparava para anunciar-lhe, Tu não tens culpa, vai-te, quando o que a ele pareceu um repentino e ofuscante clarão inundou a caverna e o despertou de golpe, Onde estou, foi o seu primeiro pensamento, e erguendo a custo, do chão pulverulento, os olhos lacrimosos, viu um homem alto, gigantesco, com uma cabeça de fogo, mas logo percebeu que o que julgara ser cabeça era um archote levantado na mão direita quase até ao tecto da cova, a cabeça verdadeira estava um pouco mais abaixo, pelo tamanho podia ser a de Golias, porém a expressão do rosto não tinha nada de furor guerreiro, antes era o sorriso comprazido de quem, tendo procurado, achou. Jesus levantou-se e recuou até à parede da caverna, agora podia ver melhor a cara do gigante, que afinal não o era assim tanto, apenas um palmo mais alto que os homens mais altos de Nazaré, as ilusões de óptica, sem as quais não há prodígios nem milagres, não são uma descoberta da nossa época, basta ver que o próprio Golias só não foi para jogador de basquetebol por ter nascido antes do tempo. Tu quem és, perguntou o homem, mas percebia-se que era só para meter conversa. Entalou o archote numa fenda da rocha, encostou à parede dois paus que trazia consigo, um polido pelo uso, de grossos nós, outro que parecia ter sido acabado de cortar da árvore, ainda com a casca, e depois foi sentar-se na pedra maior, compondo sobre os ombros o vasto manto em que se envolvia. Sou Jesus de Nazaré, respondeu o rapaz, Que vieste aqui fazer, se és de Nazaré, Sou de Nazaré, mas nasci nesta cova, vim cá para ver o sítio onde nasci, Onde tu nasceste mesmo foi na barriga da tua mãe, e aí não poderás ir jamais. Por não ouvidas antes, assim cruas, as palavras fizeram corar Jesus, que se calou.

Fugiste de casa, perguntou o homem. O rapaz hesitou, como se estivesse a procurar no seu íntimo se poderia realmente chamar-se fuga a sua saída, e acabou por responder, Sim, Não te entendias com os teus pais, Meu pai já morreu, Ah, fez o homem, mas Jesus experimentou uma estranha e indefinível impressão, a de que ele já o saberia, e não só isto, mas todo o mais, o que fora já dito e o que ainda estava por dizer. Não respondeste à pergunta, tornou o homem, Qual, Se não te entendias com os teus pais, É assunto da minha vida, Fala-me com respeito, rapaz, ou tomo o lugar do teu pai para castigar-te, aqui, não te ouviria nem Deus, Deus é olho, orelha e língua, vê tudo, ouve tudo, e só por não querer é que não diz tudo, Que sabes tu de Deus, moço, O que aprendi na sinagoga, Na sinagoga nunca ouviste dizer que Deus é um olho, uma orelha e uma língua, A conclusão foi minha, se Deus isso não fosse não seria Deus, E por que achas tu que Deus é um olho e uma orelha e não dois olhos e duas orelhas como os temos tu e eu, Para que um olho não pudesse enganar o outro olho, e uma orelha a outra orelha, para a língua não é preciso, é uma só, A língua dos homens também é dúplice, tanto serve para a verdade como para a mentira, A Deus não é permitido mentir, Quem lho impede, O

mesmo Deus, ou então negar-se-ia a si mesmo, Já o viste, A quem, A Deus, Alguns o viram e anunciaram. O homem esteve calado a olhar o rapaz como se nele buscasse umas feições conhecidas, e depois disse, Sim, é certo, alguns julgaram vê-lo. Fez uma pausa, e prosseguiu, agora com um sorriso de malícia, Não chegaste a responder-me, A quê, Se te davas mal com os teus pais, Saí de casa 76

José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo

porque quis conhecer mundo, A tua língua conhece a arte de mentir, moço, mas eu sei bem quem és, nasceste filho de um carpinteiro de obra grossa chamado José e de uma cardadora de lã chamada Maria, Como o sabes, Um dia soube-o e não o esqueci, Explica-te melhor, Sou pastor, há muitos anos que ando por aí com as minhas ovelhas e cabras, e o bode e o carneiro da cobrição, calhou estar nestes sítios quando vieste ao mundo, e ainda por cá andava quando vieram matar os meninos de Belém, conheço-te desde sempre, como vês. Jesus olhou o homem com temor e perguntou, Que nome é o teu, Para as minhas ovelhas não tenho nome, Não sou uma ovelha tua, Quem sabe, Diz-me como te chamas, Se fazes tanta questão de dar-me um nome, chama-me Pastor, é o suficiente para que me tenhas, se me chamares, Queres levar-me contigo, de ajudante, Estava à espera de que mo pedisses, E

então, Recebo-te no meu rebanho. O homem levantou-se, tomou o archote e saiu para o ar livre. Jesus seguiu-o. Era noite fechada, a lua ainda não nascera. Juntas à entrada da caverna, sem mais ruído que o leve tilintar das campainhas de algumas, as ovelhas e as cabras, tranquilas, pareciam ter estado à espera da conclusão da conversa entre o seu pastor e o ajuda novo. O homem levantou o archote para mostrar as cabeças negras das cabras, os focinhos alvacentos das ovelhas, os lombos secos e escorridos dumas, as redondas e felpudas garupas doutras, e disse, Este é o meu rebanho, cuida tu de não vires a perder um só destes animais. Sentados à boca da caverna, sob a luz instável do archote, Jesus e o pastor comeram do queijo e do pão duro dos alforges. Depois o pastor foi dentro e trouxe o pau novo, o que ainda estava encascado. Acendeu uma fogueira e, aos poucos, movendo habilmente o pau entre as chamas, foi-lhe queimando a casca até fazê-la sair em longas tiras, depois alisou-lhe toscamente os nós. Deixou-o a arrefecer por um bocado e tornou a metê-lo no lume, agora movendo-o mais depressa, sem dar tempo a que as labaredas o queimassem, desta maneira escurecendo e enrijecendo a epiderme da madeira, como se sobre a jovem vergôntea se tivessem antecipado os anos.