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Quando chegou ao fim do trabalho, disse, Aqui tens, forte e direito, o teu cajado de pastor, é o teu terceiro braço. Apesar de não ser de mãos delicadas, Jesus teve de largar o pau para o chão, tão quente estava. Como pôde ele aguentar, pensou, e não encontrava a resposta. Quando, finalmente, a lua nasceu, entraram na cova para dormir. Umas poucas ovelhas e cabras entraram também e deitaram-se ao lado deles. Alvorecia o primeiro luzeiro da manhã, quando o pastor sacudiu Jesus, dizendo-lhe, Levanta-te, rapaz, chega de dormir, o meu gado tem fome, daqui em diante o teu trabalho vai ser levá-

lo ao pasto, nunca em tua vida farás coisa mais importante. Lentamente, porque o que regulava a marcha era o passo miudinho e travado do rebanho, posto o pastor lá adiante, o ajuda atrás, foram-se dali todos, os humanos e os animais, numa fresca e transparente madrugada que parecia não ter pressa de fazer nascer o sol, ciosa de uma claridade que era como a de um mundo apenas começado. Bem mais tarde, uma mulher idosa, que a custo caminhava ajudando-se com um bordão como uma terceira perna, veio das escondidas casas de Belém e entrou na caverna. Não ficou muito admirada por não estar ali Jesus, provavelmente já nada teriam para dizer um ao outro. Na meia escuridão habitual da cova brilhava a amêndoa luminosa da candeia, que o pastor reabastecera de azeite. Daqui a quatro anos Jesus encontrará Deus. Ao fazer esta inesperada revelação, quiçá prematura à luz das regras do bem narrar antes mencionadas, o que se pretende é tão-só bem dispor o leitor deste evangelho a deixar-se entreter com alguns vulgares episódios de vida pastoril, embora estes, adianta-se desde já para que tenha desculpa quem for tentado a passar à frente, nada de substancioso venham trazer ao principal da matéria. No entanto, quatro anos sempre são quatro anos, mormente numa idade de tão grandes mudanças físicas e mentais, ele é o corpo que cresce desta desatinada maneira, ele é a barba que começa a sombrear uma pele já de si morena, ele é a voz que se torna funda e grossa como uma pedra rolando pela aba da montanha, ele é a tendência para o devaneio e o sonhar acordado, sempre censuráveis, mormente quando há deveres de vigilância a cumprir, é o caso das sentinelas nos quartéis, castelos e acampamentos, por exemplo, ou, para não sairmos da história, deste novel ajudante de pastor a quem foi dito que não pode largar de vista as cabras e as ovelhas do patrão. Que, a bem dizer, não se sabe quem seja. Pastorear, neste tempo e nestes lugares, é trabalho para servo ou escravo bruto, obrigado, sob pena de castigo, a dar constantes e pontuais contas do leite, do queijo e da lã, sem falar do número de cabeças de gado, o qual sempre deverá estar em aumento, para que possam dizer os vizinhos que os olhos do Senhor contemplam com benignidade o piedoso proprietário de bens tão profusos, o qual, se quer estar conforme com as regras do mundo, mais deverá fiar-se da benevolência do Senhor do que da força genesíaca dos cobridores do seu rebanho. Estranho, porém, é 77

José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo

que Pastor, que assim quis ele que lhe chamássemos, não pareça ter um amo que o governe, pois nestes quatro anos não virá ninguém ao deserto a recolher a lã, o leite ou o queijo, nem o maioral deixará o gado para ir dar contas do seu múnus. Tudo estaria certo se o pastor fosse, no sentido conhecido e costumado da palavra, o dono destas cabras e destas ovelhas, mas é muito difícil acreditar que o seja, realmente, quem, como ele, deita a perder quantidades de lã que excedem toda a imaginação, quem, pelos vistos, só tosquia para que não se sufoquem de calor as ovelhas, quem aproveita o leite, se o aproveita, apenas para fabricar o queijo de cada dia e trocar o que sobra por figos, tâmaras e pão, quem, finalmente, e enigma dos enigmas, não vende cordeiro ou cabrito do seu rebanho, nem mesmo na altura da Páscoa, quando, por via da procura, alcançam tão bom preço. Não admira, portanto, que o rebanho cresça sem parar, como se, afincadamente, e com o entusiasmo de quem sabe garantida uma duração justa de vida, cumprisse aquela famosa ordem que o Senhor deu, talvez pouco confiante na eficácia dos doces instintos naturais, Crescei e multiplicai-vos. Nesta grei insólita e vagabunda morre-se de velhice, e é o próprio Pastor, em pessoa, quem, serenamente, ajuda a morrer, matando-os, os animais que, por doença ou senilidade, já não podem acompanhar o rebanho.

Jesus, a primeira vez que tal aconteceu depois que começara a trabalhar para o pastor, protestou contra a fria crueldade, mas ele respondeu-lhe simplesmente, Ou os mato, como sempre tenho feito, ou os deixo abandonados para morrerem sozinhos nesses desertos, ou detenho o rebanho e fico aqui à espera de que morram, sabendo que, se levarem dias a morrer, acabará o pasto por não chegar para os que ainda estão vivos, diz-me tu como procederias se estivesses no meu lugar, se, como eu, fosses senhor da vida e da morte do teu rebanho. Jesus não soube que responder e, para mudar de assunto, perguntou, Se não vendes a lã, se temos mais leite e mais queijo do que precisamos para viver, se não fazes comércio dos anhos e dos cabritos, para que queres tu o rebanho e o deixas viver e fazes crescer assim, a ponto de um dia, se continuas, ele cobrir todos estes montes e encher a terra inteira, e Pastor respondeu, O rebanho estava aqui, alguém tinha de cuidar dele, defendê-lo das cobiças, calhou ser eu, Aqui, onde, Aqui, além, em toda a parte, Quererás dizer, se não me engano, que o rebanho sempre esteve, sempre foi, Mais ou menos, Foste tu que compraste a primeira ovelha e a primeira cabra, Não, Quem foi, então, Encontrei-as, não sei se foram compradas, e já eram rebanho quando as encontrei, Deram-tas, Ninguém mas deu, eu encontrei-as, elas encontraram-me, Então, és o dono, Não sou o dono, nada do que existe no mundo me pertence, Porque tudo pertence ao Senhor, devias sabê-lo, Tu o dizes, Há quanto tempo és pastor, Já o era quando nasceste, Desde quando, Não sei, talvez cinquenta vezes a idade que tens, Só os patriarcas de antes do dilúvio viveram tantos ou mais anos, nenhum homem dos de agora pode esperar ter tão longa vida, Bem o sei, Se o sabes, mas insistes que viveste todo esse tempo, admitirás que eu pense que não és homem, Admito. Ora, se Jesus, que tão bem encaminhado vinha na ordem e sequência do interrogatório, como se na cartilha socrática tivesse aprendido as artes da maiêutica analítica, se Jesus perguntasse, Que és então, já que homem não és, era muito provável que Pastor condescendesse em responder-lhe com um ar de quem não quer dar extrema importância ao assunto, Sou um anjo, mas não o digas a ninguém. Acontece isto muitas vezes, não fazemos as perguntas porque ainda não estávamos preparados para ouvir as respostas, ou por termos, simplesmente, medo delas. E, quando encontramos coragem para as lançar, não é raro que não nos respondam, como virá a fazer Jesus quando um dia lhe perguntarem, Que é a verdade. Então se calará até hoje. Como quer que seja, o que Jesus já sabe, sem precisar de perguntar, é que o seu enigmático companheiro não é um anjo do Senhor, pois os anjos do Senhor cantam em todos os momentos do dia e da noite as glórias do Senhor, não são como os homens, que só o fazem por obrigação e nas ocasiões regulamentares, também é certo que os anjos têm razões mais próximas e justificadas para cantarem tanto, pois que com o dito Senhor vivem eles no céu, por assim dizer de casa-e-pucarinho. O que primeiro Jesus estranhou de todo foi que, saídos da caverna para a madrugada, não tivesse Pastor procedido como ele procedera, bendizendo a Deus por aquelas coisas que sabemos, haver-lhe restituído a alma, haver dado inteligência ao galo, e, porque tivera precisão de ir atrás daquela fraga a mijar e dar de corpo, agradecer-lhe os orifícios e vasos existentes no organismo humano, providenciais no sentido absoluto da palavra, pois que sem eles. Pastor olhou o céu e a terra como faz qualquer um depois de sair da cama, murmurou algumas palavras sobre o bom tempo que os ares prometiam e, levando dois dedos à boca, soltou um assobio estridente que pôs todo o rebanho de pé como um só homem. Nada mais. Pensou Jesus que teria sido um caso de 78