José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo
esquecimento, sempre possível quando uma pessoa anda com o espírito ocupado, por exemplo, estar Pastor a pensar na melhor maneira de ensinar o rude ofício a um moço habituado aos confortos duma oficina de carpinteiro. Ora, nós sabemos que, numa situação normal, entre gente comum, Jesus não iria ter de esperar muito para se inteirar do grau efectivo de religiosidade do seu maioral, uma vez que os judeus do tempo emitiam bênçãos aí umas trinta vezes ao dia, por dá cá aquela palha, como bastantemente ao longo deste evangelho se viu, sem necessidade de melhor demonstração agora.
Passou-se o dia e nada de bênçãos, veio a noite, dormida ao relento, num descampado, e nem a majestade do céu de Deus foi capaz de acordar na alma e na boca de Pastor uma só palavrinha de louvor e gratidão, afinal o tempo podia estar de chuva e não estava, o que era, a todos os títulos, tanto os humanos como os divinos, sinal indubitável de que o Senhor velava pelas suas criaturas. Na manhã seguinte, de- pois de comer, e quando o maioral se preparava para dar uma volta ao rebanho em jeito de reconhecimento, a ver se alguma irrequieta cabra não resolvera ir de aventura pelos arredores, Jesus anunciou numa voz firme, Vou-me embora. Pastor parou, olhou-o sem mudar de expressão, apenas disse, Boa viagem, não preciso dizer-te que não és meu escravo nem há contrato legal entre nós, podes partir quando entenderes, Não queres saber por que me vou, A minha curiosidade não é tão forte que me obrigue a perguntar-to, Parto porque não devo viver ao lado duma pessoa que não cumpre as suas obrigações para com o Senhor, Que obrigações, As mais elementares, as que se exprimem pelas bênçãos e pelas graças. Pastor ficou calado, com um meio sorriso que se revelava mais nos olhos que na boca, depois disse, Não sou judeu, não tenho de cumprir obrigações que não são minhas. Jesus recuou um passo, escandalizado. Que a terra de Israel fervilhasse de estrangeiros e seguidores de deuses falsos, por de mais o sabia, mas nunca lhe sucedera dormir ao lado de um deles, comer do seu pão e beber do seu leite. Por isso, como se segurasse diante de si uma lança e um escudo protector, exclamou, Só o Senhor é Deus. O sorriso de Pastor apagou-se, a boca ganhou de súbito um vinco amargo, Sim, se existe Deus terá de ser um único Senhor, mas era melhor que fossem dois, assim haveria um deus para o lobo e um deus para a ovelha, um para o que morre e outro para o que mata, um deus para o condenado, um deus para o carrasco, Deus é uno, completo e indivisível, clamou Jesus, e quase chorava de piedosa indignação, ao que o outro respondeu, Não sei como pode Deus viver, a frase não passou daqui porque Jesus, com a autoridade de um mestre de sinagoga, cortou, Deus não vive, é, Nessas diferenças não sou entendido, mas o que te posso dizer é que não gostaria de me ver na pele de um deus que ao mesmo tempo guia a mão do punhal assassino e oferece a garganta que vai ser cortada, Ofendes a Deus com esses pensamentos ímpios, Não valho tanto, Deus não dorme, um dia te punirá, Ainda bem que não dorme, dessa maneira evita os pesadelos do remorso, Por que me falas tu de pesadelos e remorso, Porque estamos a falar do teu deus, E o teu, quem é, Não tenho deus, sou como uma das minhas ovelhas, Ao menos dão filhos para os altares do Senhor, E eu digo-te que como lobos uivariam essas mães se o soubessem. Jesus ficou pálido, sem resposta. Agora o rebanho rodeava-os, atento, num grande silêncio. O sol já nascera e a sua luz toucava de vermelho-rubi o velo das ovelhas e os cornos das cabras. Jesus disse, Vou-me embora, mas não se moveu. Apoiado ao cajado, tão calmo como se soubesse ter todo o tempo futuro à sua disposição, Pastor esperava. Enfim, Jesus deu alguns passos, abrindo caminho entre as ovelhas, mas parou de repente e perguntou, Que sabes tu de remorso e pesadelos, Que és o herdeiro de teu pai.
Estas palavras não as pôde suportar Jesus. No mesmo instante dobraram-se-lhe os joelhos, escorregou-lhe do ombro o alforge, donde, por obra de acaso ou de necessidade, lhe saltaram as sandálias do pai, ao mesmo tempo que se ouvia o ruído da tigela do fariseu ao partir-se. Jesus começou a chorar como uma criança abandonada, porém Pastor não se aproximou, apenas disse lá donde estava, Lembrar-te-ás sempre de que conheço tudo a teu respeito desde que foste concebido, e agora decide-te de uma vez, ou partes, ou ficas, Diz-me primeiro quem és, Ainda não é tempo de o saberes, E quando o souber, Se ficares, arrepender-te-ás de não teres partido, se partires, arrepender-te-ás de não ter ficado, Mas se eu me fosse embora não viria a saber quem és, Enganas-te, a tua hora há-de chegar e nessa altura estarei presente para to dizer, posto isto basta já de conversa, o rebanho não pode ficar aqui o dia todo à espera de que tu te resolvas. Jesus recolheu os cacos da tigela, olhou-os como se lhe custasse separar-se deles, em verdade não havia motivo para isso, ontem, a esta hora, ainda nem tinha encontrado o fariseu, além disso as tigelas de barro são assim, partem-se com grande facilidade. Largou os fragmentos para o chão como se os semeasse, e foi então que Pastor disse, Terás 79
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uma outra tigela, mas essa não se quebrará enquanto vivas. Jesus não o ouviu, tinha as sandálias de José na mão e pensava se não deveria calçá-las, é certo que, tão pouco tempo passado, os pés não podiam ter-lhe crescido à medida, mas o tempo, bem o sabemos, é consoante, parecia a Jesus que andara com as sandálias do pai no alforge durante uma eternidade, forte surpresa era se ainda lhe estivessem largas. Calçou-as e, sem saber por que o fazia, guardou as suas. Disse Pastor, Pés que cresceram não voltam a encolher, e tu não terás filhos que de ti herdem a túnica, o manto e as sandálias, mas Jesus não as lançou fora, o peso delas ajudava o alforge quase vazio a segurar-se no ombro. A resposta que Pastor pedira não precisou ser dada, Jesus tomou o seu lugar atrás do rebanho, divididos os sentimentos entre uma indefinível impressão de terror, como se a sua alma estivesse em perigo, e outra, ainda mais indefinível, de sombria fascinação. Hei-de saber quem tu és, murmurava Jesus enquanto, em meio do pó levantado pelo rebanho, fazia avançar uma ovelha retardatária, e desta maneira se explicava, cria ele, o motivo por que finalmente resolvera ficar com o enigmático pastor.
Este foi o primeiro dia. De assuntos de crença e impiedade, de vida, morte e propriedade, não se voltou a falar, mas Jesus, que passara a observar mesmo os mais simples movimentos e atitudes de Pastor, notou que, coincidindo quase sempre com as vezes em que ele próprio bendizia o Senhor, o seu companheiro baixava-se e assentava suavemente as palmas das duas mãos na terra, curvando a cabeça e fechando os olhos, sem dizer uma palavra. Um dia, quando era ainda menino pequeno, Jesus ouvira contar a uns velhos viajantes que passaram por Nazaré que no interior do mundo existiam enormíssimas cavernas onde se encontravam, como à superfície, cidades, campos, rios, bosques e desertos, e que esse mundo inferior, em tudo cópia e reflexo deste em que vivemos, tinha sido criado pelo Diabo depois de o ter precipitado Deus das alturas do céu, em castigo da sua revolta. E como o Diabo, de quem Deus ao princípio fora amigo, e ele favorito de Deus, comentando-se mesmo no universo que desde os tempos infinitos nunca se vira uma amizade igual àquela, como o Diabo, diziam os velhos, estivera presente no acto do nascimento de Adão e Eva, e tinha podido aprender como se fazia, então repetiu no seu mundo subterrâneo a criação de um homem e de uma mulher, com a diferença, ao contrário de Deus, de não lhes ter proibido nada, razão por que não teria havido, no mundo do Diabo, pecado original. Um dos velhos atreveu-se mesmo a dizer, E como não houve pecado original, também não houve nenhum outro. Depois de os velhos se terem ido embora, expulsos, com a ajuda de algumas pedradas persuasivas, por nazarenos furiosos que enfim tinham percebido aonde queriam os ímpios chegar com a insidiosa conversa, houve um rápido abalo sísmico, coisa ligeira, nada mais que um sinal confirmador vindo das entranhas profundíssimas da terra, foi o que então ocorreu a Jesus pensar, já muito capaz, este pequeno, de ligar um efeito à sua causa, apesar da pouca idade. E agora, perante o pastor ajoelhado, de cabeça baixa, as mãos assim pousadas no chão, de leve, como para tornar mais sensível o contacto de cada grão de areia, de cada pequena pedra, de cada radícula subida à superfície, a lembrança da antiga história despertou na memória de Jesus, e ele acreditou, por momentos, ser este homem um habitante do oculto mundo criado pelo Diabo à semelhança do mundo visível, Que terá vindo cá fazer, pensou, mas a sua imaginação não teve ânimos para ir mais longe. Então, quando Pastor se levantou, perguntou-lhe, Por que fazes isso, Certifico-me de que a terra continua por baixo de mim, Não te chegam os pés para teres a certeza, Os pés não percebem nada, o conhecimento é próprio das mãos, quando tu adoras o teu Deus não é os pés que levantas para ele, mas as mãos, e contudo podias levantar qualquer parte do corpo, até o que tens entre as pernas, se não és um eunuco. Jesus corou violentamente, a vergonha e uma espécie de susto sufocaram-no, Não ofendas o Deus que não conheces, exclamou por fim, e Pastor, acto contínuo, Quem criou o teu corpo, Deus foi quem me criou, Tal como é e com tudo o que tem, Sim, Há alguma parte do teu corpo que tenha sido criada pelo Diabo, Não, não, o corpo é obra de Deus, Então todas as partes do teu corpo são iguais perante Deus, Sim, Poderia Deus rejeitar como obra não sua, por exemplo, o que tens entre as pernas, Suponho que não, mas o Senhor, que criou Adão, expulsou-o do paraíso, e Adão era obra sua, Responde-me direito, rapaz, não me fales como um doutor da sinagoga, Queres obrigar-me a dar-te as respostas que te convêm, e eu recito-te, se for preciso, todos os casos em que o homem, porque assim o ordenou o Senhor, não poderá, sob pena de contaminação e morte, descobrir uma nudez alheia ou a sua própria, prova de que essa parte do corpo é, por si mesma, maldita, Não mais maldita do que a boca quando mente e calunia, e ela serve-te para louvares o teu Deus antes da mentira e depois da calúnia, Não te quero ouvir, Tens de ouvir-me, que mais não seja 80