José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo
porventura mais acreditadas pela tradição, mas não por isso mais autênticas. Enunciados os nomes, provada a existência efectiva de personagens que os usaram, as dúvidas que restem perdem muito da sua força, embora não a legitimidade. Não sendo isto de todos os dias, saírem à rua três anciãos emissários, como se lhes descobria pela dignidade particular da marcha, com as túnicas e as barbas ao vento, em pouco se juntaram ao redor deles alguns garotos, que, cometendo os excessos próprios da sua idade, uns risos, uns gritos, umas correrias, acompanharam os delegados da sinagoga até à casa de José, a quem o ruidoso e denunciador cortejo muito viera enfadando. Atraídas pelo ruído, as mulheres das casas próximas apareceram às portas e, pressentindo novidade, disseram aos filhos que fossem ver que ajuntamento era aquele à porta da vizinha Maria. Penas perdidas foram, que entraram só os homens. A porta fechou-se com autoridade, nenhuma curiosa mulher de Nazaré veio a saber o que em casa do carpinteiro José se passou, até aos dias de hoje. E, tendo de imaginar alguma coisa para alimento da curiosidade insatisfeita, vieram a fazer do mendigo, que nunca chegaram a ver, um ladrão de casas, grande injustiça foi, que o anjo, porém não digais a ninguém que o era, aquilo que comeu não roubou, e ainda deixou penhor sobrenatural. É que, enquanto os dois anciãos de mais idade continuavam a interrogar Maria, foi o menos velho dos três, Zaquias, pelas imediações a recolher lembranças de um mendigo assim assim, conforme os sinais dados pela mulher do carpinteiro, e nenhuma vizinha soube dar-lhe notícias, que não senhor, ontem não passou por cá nenhum pedinte, e se passou à minha porta não bateu, isso devia de ser ladrão em trânsito, que, encontrando a casa com gente, fingiu ser pobre de pedir e descampou para outra parte, é um truque conhecido desde que o mundo é mundo. Voltou Zaquias sem novas do pedinte a casa de José ao tempo que Maria repetia pela terceira ou quarta vez o que já sabemos. Estavam todos no interior da casa, ela ali de pé, parecendo ré de um crime, a tigela no chão, e dentro, insistente, como um coração palpitando, a terra enigmática, a um lado José, e os anciãos sentados em frente, como juízes, e dizia Dotaim, o do meio em idade, Não é que não queiramos acreditar no que nos contas, mas repara que és a única pessoa que viu esse homem, se homem era, teu marido nada mais sabe dele que ter-lhe ouvido a voz, e agora aqui vem Zaquias dizer-nos que nenhuma das tuas vizinhas o viu, Serei testemunha diante do Senhor, ele sabe que a verdade fala pela minha boca, A verdade, sim, mas quem sabe se toda a verdade, Beberei a água da prova do Senhor e ele manifestará se sou culpada, A prova das águas amargas é para as mulheres suspeitas de infidelidade, não pudeste ser infiel a teu marido, não te dava o tempo, A mentira, diz-se, é o mesmo que infidelidade, Outra, não essa, A minha boca é tão fiel como eu sou.
Tomou então a palavra Abiatar, o mais velho dos três anciãos, e disse, Não te perguntaremos mais, o Senhor te pagará sete vezes pela verdade que tiveres dito ou sete vezes sete cobrará de ti pela mentira com que nos tenhas enganado. Calou-se e continuou calado, depois disse, dirigindo-se a Zaquias e Dotaim, Que faremos nós desta terra que brilha, se aqui não deve ficar como a prudência aconselha, pois bem pode ser que estas artes sejam do demónio. Disse Dotaim, Que torne à terra donde veio, que volte a ser escura como foi antes. Disse Zaquias, Não sabemos quem fosse o mendigo, nem por que quis ser visto apenas por Maria, nem o que significa brilhar um punhado de terra no fundo duma tigela. Disse Dotaim, Levemo-la ao deserto e espalhemo-la ali, longe das vistas dos homens, para que o vento a disperse na imensidão e seja apagada pela chuva. Disse Zaquias, Se esta terra é um bem, não deve ser levada donde está, e se, pelo contrário, é um mal, que fiquem sujeitos a ele só aqueles que foram escolhidos para recebê-la. Perguntou Abiatar, Que propões, então, e Zaquias respondeu, Que se cave aqui um buraco e se deposite a tigela no fundo dele, tapada para que não se misture com a terra natural, um bem, mesmo que enterrado, não se perde, e um mal terá menos poder longe da vista.
Disse Abiatar, Que pensas tu, Dotaim, e este respondeu, É justo o que propõe Zaquias, façamos como ele diz. Então Abiatar disse para Maria, Retira-te e deixa-nos proceder, Para onde irei eu, perguntou ela, e José, de súbito inquieto, Se vamos enterrar a tigela, que seja fora de casa, não quero dormir com uma luz sepultada debaixo de mim. Disse Abiatar, Faça-se como dizes, e para Maria, Ficarás aqui.
Saíram os homens para o pátio, levando ZaquiaS a tigela. Pouco depois ouviram-se golpes de enxada, repetidos e duros, era José que estava cavando, e passados uns minutos a voz de Abiatar que dizia, Basta, já tem fundura que chegue. Maria espreitou pela fenda da porta, viu o marido tapar a tigela com um caco curvo de bilha e depois descê-la, a toda a altura do braço, para o interior da cova, enfim levantar-se e, deitando mão outra vez à enxada, começar a puxar a terra para dentro, calcando-a depois com os pés. Os homens ficaram ainda algum tempo no pátio, falando uns com os outros e 12