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José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo

olhando a mancha de terra fresca, como se tivessem acabado de esconder um tesouro e quisessem fixar o local na memória. Mas certamente não era disto que falavam, porque de repente ouviu-se, mais forte, a voz de Zaquias, em tom que parecia de repreensão sorridente, Ora tu, José, que carpinteiro me estás saindo, que nem és capaz de fazer uma cama, agora que tens aí a mulher grávida. Riram-se os outros e José com eles, um tanto por comprazer, como alguém que foi apanhado em falta e quer fazer de conta que não. Maria viu-os encaminharem-se para a cancela e saírem, e agora, sentada no poial do forno, passeava os olhos pela casa buscando o sítio onde haverá de pôr a cama, se o marido resolver fazê-la. Não queria pensar na tigela de barro nem na terra luminosa, tão-pouco se o mendigo seria realmente um anjo ou um farsante que viera divertir-se à sua custa. Uma mulher, se lhe prometem uma cama para a sua casa, deve é pensar onde ela vai ficar melhor.

Foi na passagem dos dias do mês de Tamuz para o mês de Av, quando se colhiam as uvas nos vinhedos e os primeiros figos maduros começavam a pintar entre a sombra verde das ásperas parras, que estes acontecimentos se deram, uns correntes e habituais, como ter-se chegado carnalmente um homem a sua mulher e passado o tempo dizer-lhe ela a ele, Estou grávida de ti, outros em verdade extraordinários, como caberem as primícias do anúncio a um mendigo em trânsito que, com toda a razoabilidade, nada deveria ter com o caso, sendo apenas autor do até agora inexplicado prodígio da terra luminosa, posta fora de alcance e investigação pela desconfiança de José e a prudência dos anciãos. Vão chegar aí os grandes calores, os campos estão pelados, só restolho e secura, Nazaré é uma aldeia parda rodeada de silêncio e solidão nas sufocantes horas do dia, à espera de que venha a noite estrelada para poder ouvir-se o respirar da paisagem oculta pela escuridão e a música que fazem as esferas celestes ao deslizarem umas sobre as outras. Depois da ceia, José ia sentar-se no pátio, do lado direito da porta, a tomar ar, gostava de sentir soprar-lhe na cara e nas barbas a primeira aragem refrescante do crepúsculo. Quando já se pusera de todo escuro, Maria vinha também e sentava-se no chão, como o marido, mas do outro lado da porta, e ali ficavam os dois, sem falar, ouvindo os rumores da casa dos vizinhos, a vida das famílias, que eles ainda não eram, faltando os filhos, Praza ao Senhor que seja um rapaz, pensava José algumas vezes ao longo do dia, e Maria pensava, Praza ao Senhor que seja um rapaz, mas as razões por que o pensava não eram as mesmas. A barriga de Maria crescia sem pressa, tiveram de passar-se semanas e meses antes que se percebesse às claras o seu estado, e, não sendo ela de dar-se muito com as vizinhas, por tão modesta e discreta ser, a surpresa foi geral nas redondezas, como se ela tivesse aparecido de balão da noite para o dia.

Porventura o silêncio de Maria tinha uma outra e mais secreta razão, a de que nunca, por nunca ser, pudesse vir a estabelecer-se uma relação entre a sua gravidez e a passagem do mendigo misterioso, precaução esta que só deveria parecer-nos absurda, sabendo como as coisas se passaram, se não se desse o caso de, em horas de afrouxamento do corpo e livre devaneio do espírito, ter Maria chegado a perguntar-se, mas porquê, Deus Santo, ao mesmo tempo aterrada pela insensatez da dúvida e alterada por um estremecimento íntimo, sobre quem seria, real e verdadeiro, o pai da criança que dentro de si se está formando. É sabido que as mulheres, quando no seu estado interessante, são atreitas a entojos e fantasias, às vezes bem piores do que esta, que manteremos em segredo para que não caia mancha na boa fama da futura mãe. O tempo foi passando, um lento mês seguindo-se a outro, o de Elul, ardente como uma fornalha, com o vento dos desertos do sul varrendo e queimando os ares, época em que as tâmaras e os figos se tornam em pingos de mel, o de Tishri, quando as primeiras chuvas do outono amaciam a terra e chamam os arados à lavra para as semeaduras, e foi no mês seguinte, o de Marhesvan, tempo da apanha da azeitona, que finalmente, arrefecendo já os dias, José se resolveu a carpinteirar um rústico catre, que para cama digna desse nome já sabemos que não lhe chega a ciência, onde Maria, depois de esperar tanto, pôde descansar o pesado e incómodo ventre. Nos últimos dias do mês de Quislau e quase todo o mês de Tavet caíram as grandes chuvas, por isso teve José de interromper o trabalho no pátio, apenas aproveitava as breves abertas em se tratando de peças de grande tamanho, o mais comum era estar dentro de casa, a jeito de receber a claridade que vinha da porta, e aí raspava e alisava os jugos que deixara em tosco, cobrindo o chão à sua volta de aparas e serradura que Maria depois vinha varrer e lançar ao pátio. No mês de Shevat floriram as amendoeiras, e entrara-se já no mês de Adar, depois das festas do Purim, quando apareceram em Nazaré uns soldados romanos, dos que então andavam por Galileia, de povoado em cidade, de cidade em 13

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povoado, e outros pelas mais partes do reino de Herodes, fazendo saber às populações que, por ordem de César Augusto, todas as famílias que tivessem o seu domicílio nas províncias governadas pelo cônsul Públio Sulpício Quirino estavam obrigadas a recensear-se e que o recenseamento, destinado, como outros, a pôr em dia o cadastro dos contribuintes de Roma, teria de ser feito, sem excepção, nos lugares donde essas famílias fossem originárias. À maior parte da gente que se tinha juntado na praça para ouvir o pregão, de pouco se lhe dava o aviso imperial, pois que, sendo naturais de Nazaré e lá fixados desde gerações, aqui mesmo se recenseariam. Porém, alguns, que tinham vindo das distintas regiões do reino, de Gaulanitide ou Samaria, de Judeia, Pereia ou Idumeia, de aquém e de além, de perto e de longe, logo começaram a deitar contas à vida e à viagem, uns com os outros murmurando contra os caprichos e a cobiça de Roma, e falando do transtorno que ia ser a falta de braços, agora que chegava o tempo de ceifar o linho e a cevada. E os que tinham famílias numerosas, com filhos na primeira idade ou pais e avós caducos, se não tinham transporte próprio bastante, pensavam já a quem poderiam pedir emprestado ou alugar por preço justo o burro ou os burros necessários, sobretudo se a viagem ia ser longa e trabalhosa, com mantimentos suficientes para o caminho, odres de água se tinham de atravessar o deserto, esteiras e mantas para dormir, vasilhas para a comida, algum abrigo suplementar, pois as chuvas e o frio ainda não se foram de todo e alguma vez será preciso dormir ao ar livre. José veio a saber do édito mais tarde, quando já os soldados tinham partido a levar a boa nova a outras paragens, foi um vizinho da casa ao lado, Ananias chamado, quem apareceu em alvoroço a dar-lhe a notícia. Este era dos que não tinham de ir de Nazaré ao recenseamento, de boa se livrara, e porque, havendo decidido que, por causa das colheitas, este ano não iria a Jerusalém, à celebração da Páscoa, se de uma viagem se tinha desobrigado, outra não o obrigava. Vai pois Ananias informar o seu vizinho, como é de dever, e vai contente, embora pareça que exagere algum tanto na expressão do rosto as demonstrações desse sentimento, queira Deus não seja por ser portador duma notícia desagradável, que mesmo as melhores pessoas estão sujeitas às piores contradições, e a este Ananias não o conhecemos bastante para saber se, neste caso, se trata de reincidência num comportamento habitual ou acontece por tentação maligna de um anjo de Satã que na altura não tivesse nada mais importante que fazer. E foi assim que veio Ananias bater à cancela e chamou José, que primeiro não ouviu por estar manejando ruidosamente martelo e pregos. Maria, sim, tinha um ouvido mais fino, mas era ao marido que reclamavam, como iria ela puxar-lhe pela manga da túnica e dizer, Estás surdo, não ouves que te estão a chamar. Gritou mais alto Ananias, e então suspendeu-se o bate-que-bate, e veio José saber o que lhe queria o vizinho. Entrou Ananias, e tendo despachado as saudações, perguntou, em tom de quem quer certificar-se, Tu donde és, José, e José, sem saber que era o que lhe queriam, respondeu, Sou de Belém de Judeia, Que está perto de Jerusalém, Sim, bem perto, E vais a Jerusalém a celebrar a Páscoa, -Tais, perguntou Ananias, e José respondeu, Não, este ano resolvi não ir, que está minha mulher no fim do tempo, Ah, E tu, por que queres sabê-lo. Foi aí que Ananias alçou os braços ao céu, ao mesmo tempo que punha uma cara de lástima inconsolável, Ai coitado de ti, que trabalhos te esperam, que canseira, que fadiga imerecida, aqui entregue aos deveres do teu ofício e agora vais ter de largar tudo e ir por esses caminhos, e tão longe, louvado seja o Senhor que tudo reconhece e remedeia. Não quis José ficar atrás em demonstrações de piedade, e, sem indagar ainda das causas da lamúria do vizinho, disse, O Senhor, querendo, me remediará a mim também, e Ananias, sem baixar a voz, Sim, ao Senhor nada é impossível, tudo conhece e tudo alcança, assim na terra como nos céus, louvado seja Ele por toda a eternidade, mas neste caso de agora, que Ele me perdoe, não sei se te poderá valer, que estás em poder de César, Que queres dizer, Que aí vieram uns soldados romanos passando aviso de que até ao último dia do mês de Nisan todas as famílias de Israel terão de ir recensear-se aos seus lugares de origem, e tu, coitado, que és lá de tão longe. Ora, antes que José tivesse tempo de responder, entrou no pátio a mulher de Ananias, que ela se chamava Chua, e, indo direita a Maria, expectante na soleira da porta, carpiu como o marido, Ai pobre, pobre, ai delicada, que será de ti, tão perto de dares à luz, e terás de ir não sei aonde, A Belém de Judeia, informou o marido, Ui, que longe isso está, exclamou Chua, e não era um falar por falar, pois em uma das vezes que fora em peregrinação a Jerusalém descera até Belém, ali ao lado, para orar diante do túmulo de Raquel. Maria não respondeu, esperava que falasse antes o marido, mas José estava enfadado, uma notícia de tal importância deveria ter sido comunicada por ele, à mulher, em primeira mão, usando as palavras adequadas e sobretudo o tom justo, não desta maneira descabelada, os 14