José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo
como és, e, se possível, ainda pior do que és agora, Porquê, Porque este Bem que eu sou não existiria sem esse Mal que tu és, um Bem que tivesse de existir sem ti seria inconcebível, a um tal ponto que nem eu posso imaginá-lo, enfim, se tu acabas, eu acabo, para que eu seja o Bem, é necessário que tu continues a ser o Mal, se o Diabo não vive como Diabo, Deus não vive como Deus, a morte de um seria a morte do outro, É a tua última palavra, A primeira e a última, a primeira porque foi a primeira vez que a disse, a última porque não a repetirei. Pastor encolheu os ombros e falou para Jesus, Que não se diga que o Diabo não tentou um dia a Deus, e, levantando-se, ia passar uma perna por cima da borda do barco, mas de súbito suspendeu o movimento e disse, Tens no teu alforge uma coisa que me pertence. Jesus não se lembrava de ter trazido o alforge para o barco, mas a verdade é que ele ali estava, enrolado, aos seus pés, Que coisa, perguntou, e, abrindo-o, viu que dentro não havia mais do que a velha tigela negra que de Nazaré trouxera, Isto, Isso, respondeu o Diabo, e tomou-lha das mãos, Um dia voltará ao teu poder, mas tu não chegarás a saber que a tens. Meteu a tigela por dentro da grosseira roupa de pastor que vestia e desceu para a água. Não olhou Deus, apenas disse, como se falasse a um auditório de invisíveis, Até sempre, já que ele assim o quis. Jesus seguiu-o com os olhos, Pastor ia-se afastando a pouco e pouco em direcção ao nevoeiro, não se lembrara de lhe perguntar por que capricho viera e se retirava assim, a nado, à distância era outra vez como um porco com as orelhas espetadas, ouviam-se os resfolgos bestiais, mas um ouvido fino não teria dificuldade em perceber que havia também ali um som de medo, não de afogar-se, que ideia, o Diabo, acabámos de sabê-lo mesmo agora, não acaba, mas de ter de existir para sempre. Já Pastor se perdia na fímbria esgarçada da névoa quando a voz de Deus de repente soou, rápida, como quem já vai de partida, Mandarei um homem chamado João para te ajudar, mas terás de convencê-lo de que és quem dirás ser. Jesus olhou, mas Deus já ali não estava. No mesmo instante o nevoeiro levantou-se e desfez-se no ar, deixando o mar limpo e liso de uma ponta à outra, entre os montes e os montes, na água nem um sinal do Diabo, no ar nem um sinal de Deus. Na margem donde tinha vindo viu Jesus, apesar da distância, um grande ajuntamento de pessoas, e muitas tendas armadas por trás da multidão, como se aquele lugar se tivesse transformado em local de permanência de uma gente que, não sendo dali, e portanto não tendo onde dormir, fora obrigada a organizar-se por sua conta. Achando o caso curioso, mas nada mais, Jesus meteu os remos na água e orientou a barca naquela direcção. Ao olhar por cima do ombro, observou que estavam a ser empurrados alguns barcos para a água, e, firmando melhor a vista, reconheceu dentro deles Simão e André, e Tiago e João, de mistura com outros que não se lembrava de ter visto, uns tantos sim, de andarem por aqui. Em pouco tempo se aproximaram, tanto era o empenho com que manejavam os remos, e, chegando à fala, gritou Simão, Onde estiveste, o que queria saber não era isto, claro, mas tinha de começar de alguma maneira, Aqui no mar, respondeu Jesus, palavras tão desnecessárias umas como outras, em verdade não parecem principiar bem as comunicações na nova época da vida do filho de Deus, de Maria e de José. Daí a um nada, enfim, saltava Simão para a barca de Jesus, e o incompreensível, o impossível, o absurdo foi conhecido, Sabes quanto tempo estiveste no mar, no meio do nevoeiro, sem que nós pudéssemos lançar os nossos barcos à água, que uma força invencível de cada vez nos empurrava para trás, perguntou Simão, O dia todo, foi a resposta de Jesus, um dia e uma noite, acrescentou, para corresponder à excitação de Simão com uma expectativa semelhante, Quarenta dias, gritou Simão, e em voz mais baixa, Quarenta dias estiveste ali, quarenta dias em que o nevoeiro não se levantou nem um bocadinho, como se quisesse esconder da nossa vista o que dentro dele se passava, que estiveste lá a fazer, que em quarenta contados dias nem um só peixe nos foi permitido tirar destas águas. Jesus deixara para Simão um dos remos, agora vinham os dois remando e conversando de concerto, ombro com ombro, pausados, o melhor que há para uma confidência, por isso antes que se acercassem outros barcos disse Jesus, Estive com Deus e sei o meu futuro, o tempo que viverei e a vida depois da minha vida, Como é ele, como é Deus, quero dizer, Deus não se mostra numa única forma, tanto pode aparecer numa nuvem, numa coluna de fumo, como vir de judeu rico, conhecemo-lo mais pela voz, depois de o termos ouvido uma vez, Que te disse ele, Que sou seu Filho, Confirmou, Sim, confirmou, Então, o Diabo tinha razão quando foi daquele caso dos porcos, O Diabo também esteve agora no barco, presenciou tudo, parece saber tanto de mim como Deus, mas há ocasiões em que penso que sabe ainda mais do que Deus, E onde, Onde, quê, Onde estavam eles, O Diabo na borda do barco, aí mesmo, entre ti e Deus, que ficou no banquinho da popa, Que te disse Deus, Que sou seu filho e serei crucificado, Vais 136
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para as montanhas lutar ao lado dos bandidos, se vais, vamos contigo, Ireis comigo, mas não para as montanhas, o que importa não é vencer César pelas armas, mas fazer triunfar Deus pela palavra, Só, Pelo exemplo também, e pelo sacrifício das nossas vidas, quando for preciso, São palavras de teu Pai, A partir de hoje todas as minhas palavras serão palavras dele, e aqueles que nele crerem, em mim crerão, porque não é possível crer no Pai e não crer no Filho, se o novo caminho que o Pai escolheu para si, só no Filho que eu sou poderá começar, Disseste que iríamos contigo, a quem te referes, A ti, em primeiro lugar, a André, teu irmão, aos dois filhos de Zebedeu, a Tiago e a João, a propósito, Deus disse-me que me enviaria um homem chamado João para me ajudar, mas aquele não deve ser, Não precisamos de mais, isto não é um cortejo de Herodes, Outros hão-de vir, e quem sabe se alguns desses não estão já ali, à espera de um sinal, um sinal que Deus manifestará em mim, para que me creiam e me sigam aqueles por quem ele não se deixa ver, Que vais anunciar às pessoas, Que se arrependam dos seus pecados, que se preparem para o novo tempo de Deus que aí vem, o tempo em que a sua espada flamejante obrigará a dobrar o pescoço àqueles que tiverem rejeitado a sua palavra e sobre ela cuspido, Vais dizer-lhes que és o Filho de Deus, não podes fazer menos do que isso, Direi que meu Pai me chamou seu Filho e que levo essas palavras no coração desde que nasci, e que agora veio também Deus dizer-me Meu Filho, um pai não faz esquecer o outro, mas hoje quem ordena é o Pai Deus, obedeçamos-lhe, Então, deixa-me o caso comigo, disse Simão, e, acto contínuo, largou o remo, deslocou-se para a proa da embarcação e, como a voz já alcançasse, gritou, Hosana, que vem chegando o Filho de Deus, ele que esteve no mar durante quarenta dias a falar com o Pai e agora regressa a nós para que nos arrependamos e preparemos, Não digas que o Diabo também lá estava, avisou rápido Jesus, temeroso de que se tornasse conhecida publicamente uma situação que teria muita dificuldade em explicar. Deu Simão um novo grito, mas mais vibrante, com o que se alvoroçaram as gentes que na margem esperavam, e depois voltou a correr para o seu lugar, dizendo a Jesus, Deixa esse remo para mim e vai-te pôr na proa, de pé, mas não digas nada de lá, enquanto não saltarmos em terra não dizes uma palavra. Assim fizeram, Jesus em pé, na proa da barca, com a sua túnica velha, o alforge vazio ao ombro, os braços meio levantados, como se fosse saudar ou lançar uma bênção e o retivesse a timidez ou uma falta de confiança no seu próprio merecimento. Dentre os que o esperavam, três houve, mais impacientes, que se meteram à água até à cintura e, chegados à altura do barco, lançaram-lhe mão e vieram puxando e empurrando a barca, enquanto, de fora, com a mão livre, um deles tentava tocar a túnica de Jesus, não porque estivesse convencido da verdade do anúncio de Simão, mas por já se lhe afigurar caso notável ter-se ausentado um homem para o meio do mar durante quarenta dias, como se tivesse ido para o deserto à procura de Deus, e das entranhas frias duma montanha de nevoeiro estar agora voltando, visse ou não visse Deus. Não deveria ser preciso acrescentar que não se tem falado doutra coisa por estas aldeias e cercanias, muitos dos que aqui estão vieram por causa do fenómeno meteorológico, ouviram apenas falar que estava lá um homem dentro e disseram, Coitado. A barca abicou sem um solavanco, como se ali a tivessem deposto asas de anjos.