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E para Simão, irmão de André, Porque temos um outro Simão connosco, tu, Simão, de hoje em diante, chamar-te-ás Pedro. Viraram as costas ao mar e puseram-se a caminho, atrás deles iam as mulheres, da maior parte das quais não chegámos a saber os nomes, na verdade, tanto faz, quase todas estas são Marias, e mesmo as que o não forem darão por esse nome, dizemos mulher, dizemos Maria, e elas olham e vêm servir-nos.

Jesus e os seus iam pelos caminhos e povoados, e Deus falava pela boca de Jesus, e eis o que dizia, Completou-se o tempo e o reino de Deus está perto, arrependei-vos e acreditai na boa nova.

Ouvindo isto, pensava o vulgo das aldeias que entre completar-se o tempo e acabar-se o tempo não podia haver diferença, e que portanto vinha aí próximo o fim do mundo, que é onde o tempo se mede e gasta. Todos davam muitas graças a Deus pela misericórdia de ter mandado adiante, a dar formal aviso da iminência do sucesso, um que se dizia seu Filho, o que bem podia ser verdade, porquanto sem mais nem quê obrava milagres por onde quer que passava, a única condição, se assim se lhe deve chamar, mas essa imprescindível, era a convicta fé de quem lhos rogasse, como foi o caso daquele leproso que lhe suplicou, Se quiseres, podes limpar-me, e Jesus, com muito dó do mísero chagado, tocou-o e mandou, Quero, fica limpo, palavras não tinham sido ditas; naquele mesmo instante a carne podre tornou-se sã, o que nela já faltava achou-se reconstituído, e onde antes estivera um gafoso horrendo e sujo, de quem todo o mundo fugia, via-se agora um homem lavado e perfeito, muito capaz para tudo. Um outro caso, igualmente digno de nota, foi o daquele paralítico a quem, por ser multidão 138

José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo

a gente à entrada da porta, tiveram de fazer subir e depois descer, no seu catre, por um buraco do telhado da casa onde Jesus estava, que seria a de Simão, chamado Pedro, e porque tão grande fé era merecedora de prémio, disse Jesus, Meu filho, os teus pecados te são perdoados, ora aconteceu que tinham ido ali uns escribas desconfiados, desses que em tudo vêem um motivo de recriminação e trazem a lei na ponta da língua, e que, ouvindo o que Jesus disse, não tiveram mão que não protestassem, Por que falas assim, estás a blasfemar, pecados só Deus os pode perdoar, e Jesus respondeu com uma pergunta, Qual é mais fácil, dizer ao paralítico Os teus pecados te são perdoados, ou dizer-lhe Levanta-te, toma o teu catre e anda, e, sem esperar que algum dos outros lhe respondesse, concluiu, Pois bem, para que saibais que tenho na terra o poder de perdoar os pecados, ordeno-te, isto era dito para o paralítico, que te levantes, tomes o teu catre e vás para tua casa, palavras foram elas tais que ali se assistiu logo a levantar-se de pé o miraculado, ainda por cima recuperado das forças, apesar da inacção causada pela paralisia, pois tomou o catre e pô-lo às costas, e foi-se à sua vida, dando mil graças a Deus. Está visto que as pessoas não andam todas por aí a pedir milagres, cada um de nós, com o tempo, habitua-se às suas pequenas ou medianas mazelas e com elas vai vivendo sem que alguma vez lhe passe pela cabeça importunar os altos poderes, mas os pecados são outra coisa, os pecados atormentam por baixo do que se vê, não são perna coxa nem braço tolhido, não são lepra de fora, mas são lepra de dentro. Por isso tinha tido Deus muita razão quando a Jesus disse que todo o homem tem pelo menos um pecado de que se arrepender, e o mais corrente e normal é que tenha muitíssimos. Ora, estando este mundo para acabar e vindo aí o reino de Deus, mais do que querermos entrar nele com um corpo refeito à custa de milagres, o que importa é que a ele sejamos encaminhados por uma alma, a nossa, purificada pelo arrependimento e curada pelo perdão. Aliás, se o paralítico de Cafarnaúm tinha passado uma parte da sua vida num grabato era porque pecara, pois é sabido que toda a doença é consequência de pecado, por isso, conclusão sobre todas lógica, a vera condição duma boa saúde, além de o ser da imortalidade do espírito, e não sabemos mesmo se da do corpo, só poderá ser uma integralíssima pureza, uma ausência absoluta do pecado, por passiva e eficaz ignorância ou por activo repúdio, tanto nas obras como nos pensamentos. Porém, não se julgue que o nosso Jesus andasse por aquelas terras do Senhor a desbaratar o poder de curar e a autoridade de perdoar que pelo mesmo Senhor lhe fora outorgado. Não que ele o não tivesse desejado, claro está, pois mais o seu bom coração o inclinaria a tornar-se em universal panaceia do que, como por mando de Deus estava obrigado, ter de anunciar a todos o fim dos tempos e reclamar de cada um arrependimento, e para que não perdessem os pecadores demasiado tempo, em cogitações que mais não visavam que adiar a difícil decisão de dizer, Eu pequei, o Senhor punha na boca de Jesus certas prometedoras e terríveis palavras, como estas eram, Em verdade vos digo que alguns dos que estão aqui presentes não experimentarão a morte sem ter visto chegar o reino de Deus com todo o seu poder, imaginem-se agora os efeitos arrasadores que um tal anúncio produziria nas consciências dos povos, de toda a parte as multidões acorriam, ansiosas, e punham-se a seguir Jesus como se ele, directamente, as devesse conduzir ao paraíso novo que o Senhor instauraria na terra e que se distinguiria do primeiro por serem agora muitos os que dele gozariam, havendo resgatado, por oração, penitência e arrependimento, o pecado de Adão, também chamado original. E como, em sua maior parte, esta confiante gente provinha de baixos estratos sociais, artesãos e cavadores de enxada, pescadores e mulherzinhas, atreveu-se Jesus, num dia em que Deus o deixara mais à solta, a improvisar um discurso que arrebatou todos os ouvintes, ali se tendo derramado lágrimas de alegria como só se conceberiam à vista duma já não esperada salvação, Bem-aventurados, disse Jesus, bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o reino de Deus, bem-aventurados vós, os que agora tendes fome, porque sereis saciados, bem-aventurados vós, os que agora chorais, porque haveis de rir, mas nesta altura deu-se Deus conta do que ali se estava a passar, e, não podendo suprimir o que por Jesus tinha sido dito, forçou a língua dele a pronunciar umas outras palavras, com o que as lágrimas de felicidade se tornaram em negras lástimas por um futuro negro, Bem-aventurados sereis quando os homens vos odiarem, quando vos expulsarem, vos insultarem e rejeitarem o vosso nome infame, por causa do Filho do Homem. Quando Jesus isto acabou de dizer, foi como se a alma lhe tivesse caído aos pés, pois no mesmo instante se lhe representou no espírito a trágica visão dos tormentos e das mortes que Deus lhe havia anunciado no mar. Por isso, diante da multidão que o olhava transida de pavor, Jesus caiu de joelhos e, prostrado, orou em silêncio, nenhum de quantos ali se encontravam 139

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podia imaginar que ele estivesse pedindo, a todos, perdão, ele que se gloriava, como Filho de Deus que era, de poder perdoar aos demais. Nessa noite, na intimidade da tenda em que dormia com Maria de Magdala, Jesus disse, Eu sou o pastor que, com o mesmo cajado, leva ao sacrifício os inocentes e os culpados, os salvos e os perdidos, os nascidos e os por nascer, quem me libertará deste remorso, a mim que me vejo, hoje, como meu pai naquele tempo, mas ele é por vinte vidas que responde, e eu por vinte milhões. Maria de Magdala chorou com Jesus e disse-lhe, Tu não o quiseste, Pior é isso, respondeu ele, e ela, como se desde o princípio conhecesse, por inteiro, o que, aos poucos, temos vindo nós a ver e a ouvir, Deus é quem traça os caminhos e manda os que por eles hão-de seguir, a ti escolheu-te para que abrisses, em seu serviço, uma estrada entre as estradas, mas tu por ela não andarás, e não construirás um templo, outros o construirão sobre o teu sangue e as tuas entranhas, portanto melhor seria que aceitasses com resignação o destino que Deus já ordenou e escreveu para ti, pois todos os teus gestos estão previstos, as palavras que hás-de dizer esperam-te nos sítios aonde terás de ir, aí estarão os coxos a quem darás pernas, os cegos a quem darás vista, os surdos a quem darás ouvidos, os mudos a quem darás voz, os mortos a quem poderias dar vida, Não tenho poder contra a morte, Nunca o experimentaste, Já, sim, mas a figueira não ressuscitou, O tempo, agora, é outro, tu estás obrigado a querer o que Deus quer, mas Deus não pode negar-te o que tu queiras, Que me liberte desta carga, não quero mais, Queres o impossível, meu Jesus, a única coisa que Deus verdadeiramente não pode, é não querer-se a si mesmo, Como o sabes tu, As mulheres têm uns outros modos de pensar, talvez seja por o nosso corpo ser diferente, deve ser isso, sim, deve ser isso. Um dia, porque a terra sempre é grande de mais para o esforço de um homem, mesmo quando se trate apenas duma sua pequeníssima parcela, como é, neste caso, a Palestina, decidiu Jesus mandar os seus amigos, aos pares, a anunciar pelas cidades, vilas e aldeias a próxima chegada do reino de Deus, ensinando e pregando por toda a parte, como ele o fazia. E como assim se achou sozinho com Maria de Magdala, pois as outras mulheres tinham acompanhado os homens, conforme os gostos e as preferências deles e delas, lembrou-se de irem de jornada até Betânia, que está perto de Jerusalém, e assim, se ao dito não falta respeito, matavam dois coelhos duma cajadada, visitando eles a família de Maria, que já era tempo de que se reconciliassem os irmãos e conhecessem os cunhados, e indo depois o grupo, outra vez reunido, a Jerusalém, pois Jesus marcara encontro a todos os seus amigos para daí a três meses, em Betânia. Do que fizeram os doze nas terras de Israel não há muito para dizer, em primeiro lugar, porque, tirante alguns pormenores da vida e circunstâncias da morte, não foi a história deles que fomos chamados a contar, e, em segundo lugar, porque não lhes havia sido concedido mais do que o poder de repetir, porém segundo o jeito de cada um, as lições e as obras do mestre, o que quer dizer que ensinaram como ele, mas curaram conforme souberam. Pena foi que Jesus lhes tivesse taxativamente ordenado que não seguissem pelo caminho dos gentios nem entrassem em cidade de samaritanos, porque com essa manifestação de surpreendente intolerância, que não devia poder esperar-se duma pessoa tão bem formada, perdeu-se a oportunidade de abreviar futuros trabalhos, pois tendo Deus o propósito, assaz claramente expresso, de ampliar os seus temtórios e influência, mais tarde ou mais cedo terá a vez de chegar, não só aos samaritanos, mas sobretudo aos gentios, quer os daqui, quer os das outras partes. Dissera-lhes Jesus que curassem os enfermos, ressuscitassem os mortos, limpassem os leprosos, expulsassem os demónios, mas, em verdade, além de umas alusões vagas e muito gerais, não se observa que tenha ficado registo nem memória de tais acções, se é que as cometeram de facto, o que finalmente serve para mostrar que Deus não se vai fiar de qualquer um, por muito boas que sejam as recomendações. Quando voltarem a estar com Jesus, algo, sem dúvida, terão os doze para contar-lhe acerca dos resultados da pregação de arrependimento que andaram espalhando, mas muito pouco poderão referir no capítulo das curas, salvo a expulsão de uns tantos demónios subalternos, desses que não precisam de exorcismos particularmente imperiosos para saltarem de uma pessoa para outra. O que, sim, dirão, é que algumas vezes foram eles expulsos ou mal recebidos em caminhos que não eram de gentios e cidades que não eram de samaritanos, sem terem outra consolação que sacudirem à saída o pó dos pés, como se a culpa fosse duma pobre poeira que todos pisam e que de nenhum se queixa. Mas Jesus tinha-lhes dito que era o que deviam fazer em tais casos, como testemunho contra quem os não quisesse ouvir, deplorável, resignada resposta, em verdade, pois do que tratava era da própria palavra de Deus deste modo rejeitada, posto que o mesmo Jesus fora muito explícito, Não vos preocupeis com o que haveis de falar, nessa altura ser-vos-á 140