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José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo

minha imperfeição sentença, foi em paz que vim e em paz quero ficar. Marta disse, Recebo-te como minha irmã pelo sangue, e espero que possa chegar o dia em que te receba pelo amor, mas hoje não, ia prosseguir, porém um pensamento deteve-a, é que não sabia se o homem que ali estava com a irmã era conhecedor, ou não, da vida que ela levara, se não a levava ainda, e então, neste ponto do raciocínio o rosto cobriu-se-lhe de rubor e confusão, por um momento odiou-os aos dois e a si própria, enfim falou Jesus, para que Marta ouvisse o que era mister, não é tão difícil assim adivinhar o que vai no pensamento das pessoas, Deus julga-nos a todos e em cada dia nos julgará diferentemente, segundo o que somos em cada dia, ora, se a ti, Marta, tivesse Deus de julgar-te hoje, não creias que serias, aos seus olhos, diferente de Maria, Explica-te melhor, não te entendo, E eu não te direi mais, guarda as minhas palavras no teu coração e repete-as contigo mesma quando olhares a tua irmã, Maria já não, Queres saber se já não sou puta, perguntou brutalmente Maria de Magdala, cortando a reticência da irmã. Marta recuou, acenou com as mãos diante do rosto, Não, não, não quero que mo digas, bastam-me as palavras de Jesus, e, sem poder conter-se, começou a chorar. Maria foi-se para ela, abraçou-a como se a embalasse, Marta dizia entre soluços, Que vida, que vida, mas não se sabia se era da irmã que falava ou de si própria. Lázaro, onde está, perguntou Maria, Na sinagoga, E de saúde, como tem passado, Continua a sofrer daquelas suas antigas sufocações, fora isso, não passa mal. Deu-lhe vontade de acrescentar, noutro sobressalto de amargura, que a preocupação se tinha atrasado pelo caminho, pois, em todos estes anos de culpada ausência, a irmã pródiga, pródiga de tempo e de corpo, pensou Marta com ironia despeitada, nunca tivera a lembrança de mandar saber notícias da família, em particular de um irmão cuja saúde débil a cada instante parecia ir romper-se de vez. Voltando-se para Jesus, que afastado dois passos observava com atenção o mal disfarçado conflito, Marta disse, O nosso irmão copia livros na sinagoga, não tem saúde para mais, e o tom, embora a intenção não fosse certamente essa, era o de alguém que nunca poderá compreender como é possível viver-se sem esta força diligente, sem este contínuo trabalho, que em todo o santo dia não tenho um momento de descanso. De que sofre Lázaro, perguntou Jesus, Dumas sufocações, como se o coração se lhe fosse parar, depois torna-se pálido, pálido, parece que vai ficar-se. Marta fez uma pausa e acrescentou, é mais novo do que nós, disse-o sem pensar, talvez porque subitamente dera pela própria juventude de Jesus, outra vez a confusão lhe entrou no espírito, um sentimento de ciúme tocou-lhe o coração, e o resultado de tudo isto foram umas palavras que soaram de modo estranho estando ali presente Maria de Magdala, que ela, sim, tinha o dever e o direito de as pronunciar, Vens cansado, senta-te, e deixa-me que te lave os pés. Um pouco mais tarde, Maria, achando-se sozinha com Jesus, disse-lhe, meio a sério, meio a sorrir, Pelos vistos e ouvidos, estas irmãs nasceram para enamorar-se de ti, e Jesus respondeu, O coração de Marta está cheio da tristeza de não ter vivido, A tristeza dela não é essa, está triste porque pensa que não há mais justiça no céu se a impura é a que recebe o prémio, e a virtuosa tem o corpo vazio, Deus terá para ela outras compensações, Pode ser, mas Deus, que fez o mundo, não deveria privar de nenhum dos frutos da sua obra as mulheres de que também foi autor, Conhecer homem, por exemplo, Sim, como tu vieste a conhecer mulher, e mais não devias precisar, sendo, como és, o filho de Deus, Quem contigo se deita não é o filho de Deus, mas o filho de José, Na verdade, nunca, desde que vieste, senti que estivesse deitada com o filho de um deus, De Deus, queres tu dizer, Quem me dera que o não fosses. Por um rapazito, filho de vizinhos, Marta mandou avisar o irmão de que tinha tornado Maria, mas não o fez sem ter hesitado muito, pois assim ia abreviar a inevitável e saborosa notícia de que a prostituta irmã de Lázaro regressara a casa, com o que a família voltava a cair nas bocas do mundo depois de o tempo, mais ou menos, as ter feito calar. A si mesma perguntava com que cara iria sair no dia seguinte à rua, e, pior ainda, se teria coragem para levar consigo a irmã, estando obrigada a falar a vizinhas e amigas, dizer, é um exemplo, Lembras-te da minha irmã Maria, pois aqui está ela, tornou a casa, e a outra, com ar entendido, Lembro-me, lembro-me, quem é que não se lembra, que estas minúcias prosaicas não escandalizem quem com elas tenha de perder o seu tempo, a história de Deus não é toda divina. Censurou-se Marta dos seus mesquinhos pensamentos quando Lázaro, chegando, se abraçou a Maria e lhe disse com simplicidade, Bem-vinda sejas, minha irmã, como se não lhe estivessem doendo tantos anos de ausência e de calado desgosto, e porque algum sinal de alegre disposição agora lhe competia dar, apontou Marta a Jesus e disse para o irmão, Este é Jesus, nosso cunhado. Os dois homens olharam-se com simpatia, e logo se sentaram a conversar, enquanto as mulheres, repetindo gestos e movimentos 142

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que haviam sido comuns noutro tempo, começaram a preparar a refeição. Ora, depois de terem ceado, Lázaro e Jesus saíram ao pátio para tomarem o fresco da noite, dentro de casa ficaram as irmãs a resolver a importante questão de como deveriam ser instaladas as esteiras, tendo em conta a alteração ocorrida na composição da família, e, ao cabo de um silêncio, Jesus, olhando as primeiras estrelas que surgiam no céu ainda claro, perguntou, Sofres, Lázaro, e Lázaro respondeu, numa voz estranhamente tranquila, Sim, sofro, Deixarás de sofrer, disse Jesus, Decerto, quando estiver morto, Deixarás de sofrer agora, Não me tinhas dito que és médico, Irmão, se eu fosse médico não saberia como curar-te, Nem podes curar-me, mesmo não o sendo, Estás curado, murmurou Jesus docemente, tomando-lhe a mão. No mesmo instante Lázaro sentiu que o mal lhe fugia do corpo como uma água escura devorada pelo sol, que se lhe alargava o fôlego e rejuvenescia o coração, e, porque não podia compreender o que se passava, teve medo na sua alma, Que é isto, perguntou, e a voz enrouquecia-lhe de angústia, Quem és tu, Médico, não sou, sorriu Jesus, Em nome de Deus, diz-me quem és, Não invocas o nome de Deus em vão, Que devo entender, Chama Maria, ela to dirá. Não foi preciso, atraídas pelo repentino altear das vozes, Marta e Maria apareceram à porta, andariam os dois homens altercando, mas logo viram que não, o pátio estava todo ele azul, o ar, queremos dizer, e Lázaro, trémulo, apontava para Jesus, Quem é este, perguntava, que com ter-me tocado a sua mão e dizer-me Estás curado me curou. Marta veio para o irmão com o propósito de sossegá-lo, como era possível estar ele curado se daquela maneira tremia, mas Lázaro afastou-a, disse, Fala tu, Maria, que o trouxeste, quem é ele. Sem se mover do limiar da porta onde se deixara ficar, Maria de Magdala disse simplesmente, É