Jesus de Nazaré, filho de Deus. Ora, mesmo sendo estes lugares, e, neles, o tempo desde o princípio do mundo, tão regularmente favorecidos de revelações proféticas e anúncios apocalípticos, o mais natural da vida seria terem manifestado Lázaro e Marta uma peremptória incredulidade, porque uma coisa é reconhecer-se alguém de súbito curado por óbvio efeito de milagre, e outra é virem-te dizer que o homem que te tocou na mão e te libertou do mal é o próprio filho de Deus. Porém, a fé e o amor podem muito, há até quem afirme que não precisam andar juntos para poderem tudo, e o caso foi que Marta se lançou, a chorar, nos braços de Jesus, depois, assustada pela ousadia, escorregou para o chão, onde ficou, e só sabia murmurar, com o rosto transfigurado, Lavei-te os pés, lavei-te os pés.
Lázaro não se tinha mexido, o assombro paralisara-o, podemos mesmo supor que se a subitânea revelação o não fulminou foi porque um acto oportuno de amor, no minuto antes, lhe pusera um coração novo no lugar do coração velho. Sorrindo, Jesus foi abraçá-lo e dizer-lhe, Que não te surpreenda ver que o filho de Deus é um filho de homem, em verdade, Deus não tinha mais por onde escolher, como os homens que escolhem as suas mulheres e as mulheres que escolhem os seus homens. As últimas palavras eram destinadas a Maria de Magdala, que as tomaria pelo bom lado, mas não se lembrou Jesus de que elas só iriam servir para aumentar o sofrimento de Marta e o desespero da sua solidão, é a diferença que há entre Deus e um filho seu, Deus fá-lo-ia de propósito, fê-lo o filho apenas por humaníssima inabilidade. Enfim, a alegria, hoje, é grande nesta casa, amanhã tornará Marta a sofrer e a suspirar, mas um alívio pode ela já ter por certo, é que ninguém terá o atrevimento de arrastar pelas ruas, praças e mercados de Betânia a vida dissoluta da irmã quando se vier a saber, e a própria Marta disso se ocupará, que o homem que com ela veio curou Lázaro do seu mal sem poção nem tisana. Estavam em casa, recolhidos e desfrutando a hora, e Lázaro disse, De longe em longe, têm chegado notícias de que um homem de Galileia andava a fazer milagres, mas não que fosse filho de Deus, Umas notícias andam mais depressa do que outras, disse Jesus, És tu esse homem, Tu o disseste. Então Jesus contou a sua vida desde o princípio, mas não toda ela, de Pastor nada, de Deus disse somente que lhe aparecera para dizer-lhe, És meu filho. Se não fosse aquela primeira notícia de uns longínquos milagres, tornados verdades puras pela palpável evidência deste, se não fosse o poder da fé, se não fosse o amor e os seus poderes, decerto haveria de ser muito difícil a Jesus, apenas com uma frase lacónica, se bem que posta na boca do próprio Deus, convencer Lázaro e Marta de que o homem que daí a pouco se iria deitar com a irmã deles era feito de espírito divino, se com a sua humana carne se aproximara dela, que a tantos homens conhecera sem temer a Deus. Perdoemos a Marta o orgulho que a levou a dizer, baixinho, com a cabeça tapada pelo lençol para não ver nem ouvir, Eu seria mais digna. Na manhã seguinte, a notícia correu velocíssima, tudo em Betânia foi um louvar e dar graças ao Senhor, e mesmo os que, modestos, começaram por duvidar do caso, considerando ser a terra demasiado pequena para nela poderem acontecer grandes coisas, esses não 143
José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo
tiveram mais remédio que render-se, à vista do miraculado Lázaro, de quem nunca deverá dizer-se que passara a vender saúde, porque era de tão amorável coração que toda a daria, se pudesse. Já à porta da casa se juntavam curiosos que queriam ver, com os seus próprios, e portanto não mentirosos olhos, o autor do feito celebrado, e, podendo ser, para final e definitiva certeza, pôr-lhe a mão em cima. Também, uns por seu pé, outros trazidos de charola, ou às costas de parentes, vieram os doentinhos à cura, em ponto de não se poder romper na estreita rua onde moravam Lázaro e suas irmãs. Sabedor que foi do adjunto, mandou Jesus avisar que falaria a todos na praça maior da aldeia, e que fossem andando para lá, que já se lhes juntaria. Ora, quem tem um pássaro na mão, não será tão tolo que o vá deitar a voar, antes lhe faz com os dedos mais segura gaiola. Por causa desta prudência ou desconfiança, ninguém dali arredou, e Jesus teve de mostrar-se e sair como qualquer um, igualzinho a nós aparecendo no vão duma porta, sem música nem resplendor, sem que a terra tremesse ou os céus se movessem de um lado a outro, Aqui estou, disse, fazendo por falar em tom natural, mas, supondo que o conseguiu, eram daquelas palavras, por si sós, vindas de quem vinham, capazes de fazer pôr os joelhos no chão a uma aldeia inteira, clamando piedade, Salva-nos, gritavam estes, Cura-me, imploravam aqueles. Jesus curou a um que, por ser mudo, nada podia pedir, e aos outros mandou-os para as suas casas porque não tinham fé bastante, e que voltassem noutro dia, mas que, primeiro que tudo, era preciso que se arrependessem dos pecados, pois o reino de Deus estava perto e o tempo a ponto de completar-se, doutrina já conhecida. És tu o filho de Deus, perguntaram-lhe, e Jesus respondeu do modo enigmático a que acostumara quem o ouvia, Se eu não o fosse, mais depressa te faria Deus mudo, que consentir que mo perguntasses. Com estes assinalados actos principiou a estação de Jesus em Betânia, enquanto não chegava o dia do encontro combinado com os discípulos que por distantes paragens andavam. Claro que não tardou que começasse a vir gente das cidades e aldeias em redor, conhecida que foi lá a notícia de que o homem que fazia milagres no norte estava agora em Betânia. Não precisaria Jesus de sair da casa de Lázaro porque todos acorriam a ela como a um lugar de peregrinação, porém Jesus não os recebia, mandava-os que se reunissem num certo monte fora da aldeia e ali lhes ia pregar o arrependimento e fazer algumas curas. Tanto se falou e disse, que as vozes chegaram a Jerusalém, fazendo com que se engrossassem as multidões e Jesus se interrogasse sobre se deveria ali continuar, com risco dos motins que sempre se geram nos ajuntamentos excessivos. De Jerusalém viera, primeiramente, ao rumor duma esperança de salvação e cura, o miúdo povo, mas não demorou que começasse a aparecer também gente das classes que por cima estão, e mesmo uns quantos fariseus e escribas que se tinham recusado a acreditar que alguém, em seu juízo, tivesse o atrevimento, por assim dizer suicida, de chamar-se, com todas as letras, Filho de Deus. Regressavam a Jerusalém irritados e perplexos porque Jesus nunca respondia afirmativamente quando lho perguntavam, e todo o seu falar, no que toca a filiações, era denominar-se a si mesmo Filho do Homem, e se, falando de Deus, lhe acontecia dizer Pai, entendia-se que o era de todos, e não apenas seu. Restava então, como questão dificilmente polémica, o poder curativo de que dava sucessivas provas, exercido sem artificiosos passes de mágica, do modo mais simples, uma ou duas palavras, Caminha, Levanta-te, Diz, Vê, Sê limpo, um subtil toque da mão, nada mais que o roce suave da ponta dos dedos, acto contínuo a pele dos leprosos brilhava como o orvalho ao dar-lhe a primeira luz do sol, os mudos e os gagos embriagavam-se no fluxo torrencial da palavra libertada, os paralíticos saltavam do catre e dançavam até se lhes esgotarem as forças, os cegos não acreditavam no que os seus olhos podiam ver, os coxos corriam e corriam, e depois, de pura alegria, fingiam-se de coxos para tornarem a correr outra vez, Arrependei-vos, dizia-lhes Jesus, arrependei-vos, e não lhes pedia mais nada. Mas os sacerdotes superiores do Templo, sabedores, mais do que ninguém, das confusões e outras perturbações históricas a que tinham dado azo, no seu tempo, profetas e anunciadores de vária índole, decidiram, depois de pesadas e medidas todas as palavras ouvidas a Jesus, que neste tempo não se veriam convulsões religiosas, sociais e políticas como as do passado, e que de hoje em diante estariam com atenção a tudo o que o galileu fosse fazendo e dizendo, para que, em caso de necessidade, e tudo indica que lá havemos de chegar, seja cortado e arrancado pela raiz o mal que já se anuncia, porque, dizia o sumo sacerdote, A mim não me engana ele, o filho do Homem é o filho de Deus. Jesus não fora semear grãos a Jerusalém, mas em Betânia talhava, forjava e dava fio à foice com que lá o haverão de ceifar. Nesta festa estávamos quando, dois agora, dois amanhã, aos pares de cada vez, ou quatro que se tinham encontrado no caminho, começaram a chegar a Betânia os 144