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— Se a sombra tiver um nome — disse por fim —, não creio que vá parar e dizer-me…

— Não — respondeu Óguion. — Tal como tu não paraste nem lhe disseste o teu. E, no entanto, ela sabia-o. Na charneca de Osskil ela chamou-te pelo teu nome, pelo nome que eu te dei. É estranho, muito estranho…

E remeteu-se uma vez mais ao seu pensativo silêncio. Por fim, Gued disse:

— Vim aqui em busca de conselho e não de refúgio, Mestre. Não atrairei esta sombra sobre ti e em breve aqui estará se eu ficar. Já uma vez a expulsaste desta mesma sala…

— Não, essa era apenas o seu presságio, a sombra de uma sombra. Não a conseguiria expulsar agora. Só tu o poderias fazer.

— Mas eu sou impotente perante ela. Haverá algum lugar… Mas a voz faltou-lhe antes que terminasse a pergunta.

— Não há lugar seguro algum — disse Óguion suavemente. — Não te voltes a transformar Gued. A sombra pretende destruir o teu ser verdadeiro. Quase o conseguiu, levando-te a tomar o ser do falcão. Não, não sei onde deverás dirigir-te. Porém, tenho uma idéia do que deves fazer. É uma coisa difícil de te dizer.

O silêncio de Gued exigia a verdade e, por fim, Óguion falou de novo:

— Deves voltar-te para trás.

— Voltar-me para trás?

— Sim. Se seguires em frente, se continuares a fugir, para onde quer que corras encontrarás o perigo e o mal, porque são eles que te conduzem, que escolhem o caminho que segues. Tens de ser tu a escolher. Tens de buscar o que te busca. Tens de caçar o caçador.

Gued nada disse.

— Na fonte do rio Ar te dei o nome — prosseguiu o mago —, uma corrente que desce da montanha até ao mar. Um homem deveria saber a que fim se destina, mas nunca o saberá se não voltar atrás, regressando ao seu início e guardando esse início no seu ser. Se não quiser ser como um madeiro mergulhado e arrastado na corrente, terá de ser a própria corrente, toda ela, desde a nascente até mergulhar no mar. Tu regressaste a Gont, regressaste para junto de mim, Gued. Volta-te agora decididamente para trás, busca a tua própria nascente e o que jaz para trás dela. Aí reside a esperança de encontrares forças.

— Aí, mestre? — disse Gued, o terror presente na sua voz. — Onde?

Óguion não respondeu.

— Se me voltar — disse Gued, decorrido algum tempo —, se, como dizes, der caça ao caçador, penso que a caçada não durará muito. Tudo o que a sombra deseja é encontrar-me frente a frente. E já por duas vezes o fez, e por duas vezes me venceu.

— Às três é de vez — fez notar Óguion.

Gued pôs-se a caminhar na sala de um lado para o outro, da lareira até à porta, da porta até à lareira.

— E se ela me derrotar totalmente — disse, argumentando talvez com Óguion, talvez consigo próprio —, apoderar-se-á do meu saber e da minha força para os usar. Agora é apenas a mim que ameaça. Mas se entrar em mim e me possuir, será grande o mal que poderá realizar através de mim.

— Isso é verdade. Se te derrotar.

— No entanto, se eu voltar a fugir, é mais seguro que voltará a encontrar-me… E toda a minha resistência se terá gasto na fuga.

Durante algum tempo ainda continuou Gued a andar de um lado para o outro. Depois, subitamente, estacou, virou-se e, ajoelhando perante o mago, disse:

— Acompanhei com grandes feiticeiros e vivi na Ilha dos Sages, mas tu, Óguion, és o meu verdadeiro Mestre.

— Falara com amor e uma jovialidade sombria.

— Bom — disse Óguion. — Agora já o sabes. E antes tarde que nunca. Mas, no fim, serás tu o meu Mestre.

Levantou-se, espevitou o lume até obter uma boa chama e pendurou a chaleira sobre ele para ferver água. Depois, vestindo o seu casaco de pele de ovelha, disse:

— Tenho de ir tratar das minhas cabras. Toma tu conta da chaleira por mim, rapaz.

Ao voltar, a neve sobre ele como um pó branco e batendo os pés para retirar mais neve ainda das suas botas de couro de cabra, trazia uma haste, comprida e rugosa, de teixo. Durante todo o final da curta tarde e ainda depois da ceia, esteve a trabalhar a madeira à luz da candeia, com faca, pedra-pomes e artes de encantamento. Muitas vezes passou as mãos ao longo da madeira, como se procurasse algum defeito. Muitas vezes, enquanto trabalhava, se pôs a cantar suavemente. Gued, ainda fatigado, ouvia-o e, à medida que ia ficando ensonado, via-se como criança na cabana da bruxa, na aldeia de Dez Amieiros, numa noite de neve, no escuro cortado pelo luzir do fogo, o ar pesado do aroma das ervas e do fumo, e a sua mente vogando ao sabor de sonhos, enquanto escutava o longo e suave canto em que se entrecruzavam sortilégios e feitos de heróis que lutaram contra os poderes da treva e venceram, ou foram derrotados, em ilhas distantes, muito tempo atrás.

— Pronto — disse Óguion, entregando-lhe o bordão acabado. — O Arquimago deu-te madeira de teixo, uma boa escolha, e eu ative-me a ela. Trouxe a haste a pensar em fazer um arco, mas assim é melhor. Boa noite, meu filho.

E enquanto Gued, que não encontrara palavras para lhe agradecer, se encaminhava para a sua alcova, Óguion ficou a observá-lo e, demasiado baixo para que Gued o pudesse ouvir, murmurou:

— Voa bem, ó meu jovem falcão!

No frio do amanhecer, quando Óguion acordou, Gued partira. Mas deixara, à maneira dos feiticeiros, uma mensagem em runas prateadas, riscadas na pedra do lar, mensagem que se desvaneceu ao ser lida e que dizia: «Mestre, vou à caça.»

8. A CAÇADA

Gued partira de Re Albi, estrada abaixo, no escuro invernal antes da madrugada e, não era ainda meio-dia, alcançou o Porto de Gont. Óguion fornecera-o com decentes roupas de Gont, polainas, camisa e veste de couro e linho, para substituir os luxos osskilianos, mas Gued mantivera, para a sua jornada de Inverno, o senhoril manto forrado com pele de pellauí. Assim ataviado, de mãos vazias salvo o escuro bordão que o igualava em altura, chegou às Portas da Cidade, e os soldados, que se recostavam contra os dragões nela esculpidos, não precisaram de olhar mais que uma vez para reconhecerem nele o feiticeiro. Desviaram as suas lanças e deixaram-no passar sem qualquer pergunta, olhando-o enquanto ele seguia rua abaixo.

Nos cais e na Casa da Guilda do Mar, informou-se sobre navios que pudessem estar de partida para norte ou ocidente, para Enlad, Andrad, Oranéa. Todos lhe responderam que nenhum iria partir do Porto de Gont naquela altura, tão perto do Regresso-do-Sol, e na Guilda do Mar disseram-lhe que nem sequer os barcos de pesca sairiam pelos Braços da Falésia com tempo tão pouco de fiar.

Ofereceram-lhe de jantar ali mesmo, na despensa da Guilda do Mar. É muito raro que um feiticeiro tenha de pedir que o alimentem. Sentou-se durante algum tempo junto daqueles estivadores, carpinteiros e fazedores de tempo, tirando prazer da sua lenta e esparsa conversação, a sua resmungante fala gontiana. Havia nele um grande desejo de permanecer ali, em Gont, renunciando a todas as feitiçarias e aventuras, esquecendo todo o poder e todo o horror, para viver em paz como outro homem qualquer, no querido chão da sua terra natal. Era esse o seu desejo, mas outra a sua vontade. Não se demorou muito na Guilda do Mar, nem na cidade, depois de se certificar de que não iriam sair navios do porto. Iniciou uma caminhada ao longo da costa da baía até chegar à primeira das pequenas aldeias a norte da Cidade de Gont e ali foi interrogando os pescadores até encontrar um que tinha um barco para vender.

O pescador era um velho obstinado. O barco, com pouco mais de três metros e construído com tábuas sobrepostas, estava tão empenado e cheio de fendas que mal poderia fazer-se ao mar, o que não o impediu de pedir por ele elevado preço, ou seja, a encantamento de segurança no mar lançada sobre o seu barco, ele próprio e o filho. Porque os pescadores gontianos nada temem, nem sequer feiticeiros, mas apenas o mar.