No silêncio mais total, a sombra, vacilando, voltou-se e fugiu.
Para norte, de onde o vento soprava, se dirigiu. E para de onde o vento soprava seguiu o barco de Gued, a rapidez da sombra contra a arte mágica, a chuva e a ventania contra ambas. E o jovem bradou ordens ao seu barco, à vela e ao vento e às ondas na sua frente, tal como o caçador grita aos seus cães quando o lobo corre visivelmente à sua frente, e trouxe àquela vela tecida de sortilégios um vento que teria despedaçado qualquer vela de pano e levou o seu barco por sobre o mar como se fora um pedaço de espuma, cada vez mais perto da coisa que fugia.
Então a sombra rodou descrevendo um semicírculo e, logo parecendo mais frouxa e indistinta, menos semelhante a um homem e mais como mero fumo levado pelo vento, voltou para trás e correu com as rajadas, como se se dirigisse a Gont.
Usando a mão e a magia, Gued inverteu o rumo e o barco saltou como um golfinho fora da água, balouçando com aquela rápida reviravolta. Mais rápido que antes prosseguiu, mas a sombra era cada vez mais indistinta ao olhar de Gued. A Chuva, envolta com saraiva e neve, açoitou-lhe furiosamente as costas e a face esquerda, não o deixando ver mais que a uns cem metros para a frente. Dentro em breve, com a tempestade a engrossar, deixou de avistar a sombra. No entanto, Gued estava seguro do rumo que ela seguia, como se fosse o de um animal em vez do rasto de um espectro fugindo sobre a água. Embora o vento soprasse agora de feição, manteve o cantante vento mágico na vela, e flocos de espuma saltavam da proa do barco, que ia batendo o mar no seu progresso.
Durante muito tempo caça e caçador mantiveram o seu célere e estranho curso, e o dia ia escurecendo rapidamente. Gued sabia que, à grande velocidade a que navegara durante as últimas horas, devia estar agora a sul de Gont, dirigindo-se para além da ilha para Spevy ou Torheven, ou quiçá ainda para além dessas ilhas pelo mar aberto da Estrema. Não o saberia dizer. Nem lhe dava cuidado. Caçava, seguia o rasto, o medo corria na sua frente.
De súbito, avistou por um momento a sombra, não muito longe dele. O vento do mundo tinha vindo a abrandar e a neve e a chuva da tempestade tinham dado lugar a ura nevoeiro frio, esparso e que se ia tornando mais espesso. Foi através desse nevoeiro que teve um vislumbre da sombra, fugindo agora um pouco para a direita do seu rumo. Falou ao vento e à vela, moveu a cana do leme e prosseguiu no que, mais uma vez, era uma perseguição às cegas. O nevoeiro adensava-se rápido, como que fervendo e rasgando-se quando encontrava o vento mágico, fechando-se em toda a volta do barco, uma palidez informe que amortecia a luz e a vista. Exatamente quando Gued pronunciava a primeira palavra de um encantamento de clarear, viu de novo a sombra, ainda para a direita do seu curso, mas muito próxima e avançando lentamente. O nevoeiro atravessava-lhe a cabeça vaga e sem feições, no entanto com o feitio da de um homem, só que deformada e em mudança constante, como a sombra desse homem. Uma vez mais Gued fez guinar o barco, pensando que teria dado com o inimigo em terra. Mas nesse mesmo instante a sombra desvaneceu-se e foi o seu barco que deu em terra, despedaçando-se de encontro aos baixios que o nevoeiro lhe ocultara da vista. Quase foi lançado borda fora, mas antes conseguiu agarrar-se ao bordão que lhe servia de mastro, antes que nova onda rebentasse sobre ele. E foi uma grande vaga que arrancou o barco da água e deu com ele em cima de um rochedo, do mesmo modo que um homem poderia erguer e esmagar uma concha de caracol.
Forte e cheio de magia era o bordão que Óguion afeiçoara. Não se quebrou e, boiando como um madeiro seco, cavalgou as águas. Continuando a segurá-lo, Gued foi puxado para trás quando a rebentação escorreu do baixio, de modo que ficou em água profunda e, até que viesse a onda seguinte, a salvo de embater nas rochas. Os olhos cegos do sal, sufocando, tentou manter a cabeça fora de água e lutar contra a tremenda força de sucção do mar. Um pouco para o lado dos rochedos havia uma praia de areia que ele entreviu uma ou duas vezes enquanto tentava nadar para se libertar do encher da próxima onda. Com toda a sua força e o poder do bordão a ajudá-lo esforçou-se por alcançar a praia. Não conseguiu aproximar-se. O ir e vir da rebentação lançavam-no de um lado para o outro como um trapo e a frialdade do mar profundo rapidamente lhe roubou o calor do corpo, enfraquecendo-o até ele já não poder mover os braços. Perdera de vista tanto os rochedos como a praia e nem sabia para que lado estava virado. Em seu redor havia apenas o tumultuar da água, e por baixo e por cima dele, cegando-o, estrangulando-o, afogando-o.
Uma onda, enchendo ao aproximar-se de terra sob o nevoeiro esparso, pegou nele, fez rolar uma e outra vez, acabando por lançá-lo como um pau à deriva para cima da areia.
E ali se quedou prostrado. Agarrava ainda com ambas as mãos o bordão de teixo. Ondas menores arrastaram-se até ele, tentando trazê-lo de novo praia abaixo ao retirarem-se. A névoa abria para logo voltar a fechar sobre ele. Mais tarde, açoitou-o uma bátega de neve derretida.
Passado muito tempo, moveu-se. Ergueu-se sobre as mãos e os joelhos e começou lentamente a rastejar pela praia acima, afastando-se da beira do mar. Fazia agora noite escura, mas ele dirigiu um sussurro ao bordão e uma tênue luz de fogo-fátuo brilhou, envolvendo-o. Tendo a luz para se guiar, esforçou-se por avançar, a pouco e pouco, subindo em direção às dunas. Estava tão moído, quebrado e enregelado que aquele rastejar através da areia molhada, no escuro cheio do assobiar do vento, do estrondear do oceano, foi a empresa mais árdua que até aí tivera de empreender. Por uma ou duas vezes lhe pareceu que o grande ruído do mar e do vento morria, que a areia molhada se tornava em pó seco debaixo das suas mãos, e sentiu o brilho imóvel de estranhos astros sobre o seu dorso. Mas não ergueu a cabeça, continuou a gatinhar e, pouco depois, voltou a ouvir a sua própria e ofegante respiração, voltou a sentir o vento áspero lançando-lhe a chuva contra o rosto.
O movimento trouxe de novo, e finalmente, um pouco de calor ao seu corpo e, depois de ter rastejado até ao cimo das dunas, onde as rajadas de vento e chuva eram menos fortes, conseguiu pôr-se de pé. Com a palavra obteve do bordão uma luz mais forte, porque o mundo era de um negrume total, e depois prosseguiu apoiando-se ao bordão, vacilando, parando aqui e ali, durante meia milha para o interior. Depois, no cimo de uma duna, voltou a ouvir o mar, um som novamente forte e não atrás de si, mas em frente. As dunas voltavam a descer para uma outra costa. Aquilo não era uma ilha, mas sim um mero banco de areia no meio do oceano.
Estava demasiado esgotado para desesperar, mas soltou uma espécie de soluço e ficou para ali, desnorteado, apoiado ao seu bordão, durante longo tempo. Depois, persistentemente, voltou para a esquerda de modo a pelo menos ter o vento pelas costas e arrastou os pés pela alta duna abaixo, procurando alguma depressão por entre as ervas esgarçadas, dobradas pelo vento e debruadas de gelo, onde pudesse conseguir algum abrigo. Ao erguer o bordão para ver o que tinha diante de si, entreviu uma débil claridade no extremo do círculo de luz do fogo-fátuo, uma parede de madeira molhada pela chuva.
Era uma cabana ou telheiro, uma construção pequena e insegura como se tivesse sido feita por uma criança. Gued bateu na porta baixa com o seu bordão. Permaneceu fechada. Abriu-a com um empurrão e entrou, quase precisando de se dobrar em dois para o fazer. Mesmo dentro da cabana, não lhe foi possível endireitar-se. Carvões acesos libertavam o seu brilho vermelho no buraco do fogo e, ao seu tênue clarão, Gued viu um homem de longo cabelo branco, que se agachava aterrorizado de encontro à parede do fundo, e mais alguém, não saberia dizer se homem ou mulher, que o espreitava de dentro de um montão de farrapos ou peles, caído no chão.