— Não vos vou fazer mal — murmurou Gued.
Não responderam. Olhou para um e para outro. O medo esvaziara-lhes os olhos de expressão. Quando pousou o bordão, aquele que estava sobre o monte de trapos escondeu-se, gemendo. Gued tirou o manto, pesado de água e gelo, despiu-se e pôs a roupa em monte por sobre o buraco do lume.
— Dêem-me qualquer coisa para me embrulhar — pediu. Estava rouco e mal podia falar, de tal maneira lhe batiam os dentes e o sacudiam longos arrepios. Se é que o ouviram, nenhum dos velhos respondeu. Estendeu o braço e apanhou um trapo do monte em cima da cama. Em tempos, teria sido uma pele de cabra, mas agora era apenas uma coisa esfarrapada e cheia de gordura preta. A pessoa que estava debaixo do montão de farrapos gemeu de medo, mas Gued não lhe prestou atenção. Esfregou-se até ficar seco e depois sussurrou:
— Não têm lenha? Ateia um bocado o lume, velho. Vim ter contigo por necessidade, não vos quero fazer mal.
Mas o velho não se moveu, olhando-o numa espécie de transe de medo.
— Percebes o que digo? Não falas Hardic? — E depois de uma pausa, pronunciou: — Kargad?
A essa palavra, o velho acenou de imediato que sim, uma só vez, como uma velha e triste marionete. Mas como aquela era a única palavra que Gued conhecia da língua karguiana, a conversa ficou por ali. Descobriu lenha empilhada de encontro a uma parede, ateou ele próprio o lume, e depois, por gestos, pediu água, pois a água do mar que engolira deixara-o agoniado e tinha a boca seca de sede. Sempre encolhido de medo, o velho apontou uma grande concha que continha água e empurrou para perto do lume uma outra em que se via tiras de peixe secas ao fumeiro. E assim, de pernas cruzadas e bem junto ao fogo, Gued bebeu, comeu um pouco e, à medida que as forças e o raciocínio lhe voltavam, começou a interrogar-se onde estaria. Mesmo com o vento mágico, não lhe teria sido possível ter navegado toda a distância até às Terras de Kargad. Aquela ilhota devia ficar ao largo, na Estrema, a leste de Gont, mas ainda a oeste de Karego-At. Parecia-lhe estranho que houvesse gente a habitar um local tão pequeno e desolado, uma mera tira de areia. Seriam talvez náufragos. Mas, de momento, estava demasiado cansado para se pôr a pensar nisso.
Ia voltando o manto para o calor e a pele de pellauí secava depressa. Logo que a lã do forro ficou pelo menos quente, se não totalmente seca, enrolou-se no manto e estendeu-se junto ao fogo.
— Durmam, durmam, pobre gente — disse ele aos seus silenciosos anfitriões e, deitando a cabeça no chão de areia, deixou-se dormir.
Três noites passou ele naquela ilhota sem nome, porque na primeira manhã, ao acordar, não havia músculo que não lhe doesse, estava febril e sentia-se mal. Todo aquele dia e a noite que se lhe seguiu permaneceu deitado junto ao fogo como um toro levado pelas ondas. No outro dia acordou, ainda entorpecido e dorido, mas recuperado. Voltou a envergar as suas roupas encrustadas de sal, pois não havia água doce suficiente para as lavar, e, saindo para a manhã cinzenta e ventosa, observou aquele lugar para onde a sombra o arrastara ao engano.
Era uma faixa de areia e rochedos, com uma milha de largura máxima e um pouco maior no sentido do comprimento, debruada em toda a volta de baixios e rochedos. Sobre ela não crescia qualquer árvore ou arbusto, nem plantas para além das ervas esgarçadas, dobradas pelo vento. A cabana erguia-se numa depressão das dunas e o velho e a mulher viviam ali sozinhos, na extrema desolação do mar vazio. A cabana fora construída, melhor dizendo, empilhada com tábuas e ramos trazidos pelo mar. Tiravam a água, salobra, de um pequeno poço ao lado da cabana. Por alimento tinham peixes e moluscos, crus ou secos, e algas dos rochedos. As peles em farrapos da cabana e uma pequena provisão de agulhas de osso e anzóis, bem como os tendões para linhas de pesca e para rodar o pau de fazer fogo, não vinham de cabras como Gued pensara a princípio, mas de focas malhadas. E na realidade aquele era o tipo de lugar onde as focas se dirigem para criar os seus filhotes no Verão. Mas mais ninguém demanda um tal lugar. Os velhos temiam Gued não porque o julgassem um espírito, não por se tratar de um feiticeiro, mas simplesmente porque era um homem. Tinham esquecido que havia outras pessoas no mundo.
O temor taciturno do velho nunca esmoreceu. Quando pensava que Gued se iria aproximar o suficiente para o tocar, logo se afastava manquejando, olhando para trás com um franzir de sobrancelhas por baixo das farripas da sua cabeleira de um branco sujo. A princípio, a mulher soltara queixumes e escondera-se debaixo do seu montão de farrapos sempre que Gued se movia. Mas, quando ele ficara estendido e num quase sono febril na escura cabana, vira-a agachar-se para o olhar com uma expressão estranha, parada e andante. E, mais tarde ainda, dera-lhe água a beber. Mas quando ele se sentou para receber a concha das suas mãos, assustara-se e deixara-a cair, entornando toda a água, e depois chorou e limpou os olhos ao seu longo cabelo de um branco-acinzentado.
Agora observava-o, enquanto ele trabalhava lá em baixo na praia, afeiçoando madeira dada à costa e pranchas do seu próprio barco, que as ondas tinham também trazido, para fazer um novo barco, usando a grosseira enxó de pedra do velho e um encantamento de prender. Não se tratava de uma reparação nem de construir um barco, pois não dispunha de madeira capaz que chegasse, e tinha de prover todas as suas necessidades com pura feitiçaria. Contudo, a velha observava não tanto o seu maravilhoso trabalho, mas mais a ele próprio, e sempre com aquela mesma expressão ansiosa nos olhos. Passado um bocado, afastou-se e depois regressou com uma oferta, uma mão-cheia de mexilhões que apanhara nas rochas. Gued comeu-os tal como ela lhos dera, molhados de água do mar e crus, e agradeceu-lhe. Parecendo ganhar coragem, a velha foi até a cabana e voltou trazendo de novo alguma coisa nas mãos, desta feita um volume embrulhado num farrapo. Timidamente, sempre com os olhos postos no seu rosto, desembrulhou o que trazia e ergueu-o para que ele o visse.
Era um vestido de bebê, de brocado de seda, avolumado por um sem-fim de minúsculas pérolas, manchado de sal, amarelecido pelos anos. No pequeno corpete as pérolas estavam dispostas numa forma que Gued conhecia. A dupla flecha dos Irmãos-Deuses do Império de Kargad, encimada por uma coroa de rei.
A anciã, enrugada e suja, coberta por uma espécie de saco mal cosido de pele de foca, apontou para o pequeno vestido de seda e depois para si própria, e sorriu. Um sorriso doce e sem sentido, como o de uma criança. De qualquer esconderijo cosido à saia do vestido, retirou um pequeno objeto e estendeu-o para Gued. Era um pedaço de metal escurecido, talvez um bocado de alguma jóia quebrada, o semicírculo de um anel partido. Gued olhou-o, mas ela fez-lhe um gesto para que o tomasse e não desistiu enquanto ele não lhe fez a vontade. Depois acenou a cabeça e voltou a sorrir. Dera-lhe um presente. Mas quanto ao vestido, embrulhou-o cuidadosamente no mesmo farrapo gordurento e dirigiu-se manquejando para a choupana, a guardar a bela peça de roupa.
Gued colocou o anel quebrado no bolso da sua túnica quase com o mesmo cuidado, porque o seu coração estava pleno de dó. Adivinhava agora que aqueles dois deviam ser filhos de alguma casa real do Império de Kargad. Um tirano ou usurpador, temendo verter sangue real, enviara-os para serem abandonados numa ilha que não viesse nos mapas, longe de Karego-At, para lá viverem ou morrerem. Um teria sido talvez um rapaz de oito ou dez anos e o outro uma bebê saudável e forte, com um vestido de seda e pérolas. E ali tinham vivido e continuado a viver, sozinhos, durante quarenta anos, cinqüenta anos, num rochedo no meio do oceano, o príncipe e a princesa da Desolação.
Mas se era verdade ou não o que julgava adivinhar, só o veio a saber quando, anos mais tarde, a busca do anel de Erreth-Akbe o levou até às Terras de Kargad e aos Túmulos de Atuan.