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Fazendo-se de novo ao mar e rodeando as costas de Soders, onde campos brancos de neve se perdiam ao longe nos montes enevoados, Gued dirigiu o barco de novo para sul e entraram em águas onde os grandes comerciantes do Arquipélago nunca vinham, a orla mais longínqua da Estrema.

Vetch não fez qualquer pergunta acerca da rota que seguiam, sabendo que Gued não a escolhia, seguindo apenas para onde tinha de seguir. Com a Ilha de Soders a tornar-se pequena e indistinta atrás deles, as ondas silvando e batendo sob a proa e a grande planície cinzenta da água a rodeá-los totalmente até ao horizonte, Gued perguntou:

— Que terras ficam para a frente, seguindo este rumo?

— Mesmo na direção sul, não há quaisquer terras. Para sudeste, percorre-se um longo caminho e pouco se encontra. Pelimer, Kornay, Gosk e Astowell, a que também chamam Última Terra. Para além disso, é o Alto Mar.

— E para sudoeste?

— Rolameny, que é uma das nossas ilhas da Estrema Leste, e algumas ilhotas em redor. Depois nada até chegarmos à Estrema Sul e aí tens Rud e Tume, mais a Ilha da Orelha onde os homens não vão.

— Nós, talvez — disse Gued, amargamente.

— Preferia que não — contrapôs Vetch. — Dizem que é uma bem desagradável parte do mundo, cheia de ossadas e portentos. Os marinheiros afirmam que das águas junto às ilhas da Orelha e de Além-Sorr se vêem estrelas que não podem ser vistas em mais lado nenhum e a que nunca foram dados nomes.

— Sim, havia um marinheiro no barco que me levou a Roke pela primeira vez que falava disso. E contava histórias do Povo das Jangadas nas zonas mais afastadas da Estrema Sul que só vão a terra uma vez por ano, cortar grandes toros para as suas jangadas, e no resto do ano, todos os seus meses e dias, vogam à deriva nas correntes do oceano, fora da vista de qualquer terra. Gostaria de ver essas aldeias de jangadas.

— Pois eu não — retorquiu Vetch, arreganhando os dentes. — Dá-me antes terra e gente de terra. O mar no seu leito e eu no meu…

— Quem me dera ter podido ver todas as cidades do Arquipélago — disse Gued, segurando o cabo de comandar a vela, olhando as ermas vastidões cinzentas à frente deles. — Havnor, no coração do mundo, e Éa, onde os mitos nasceram, e Shelieth das Fontes, em Way. Todas as cidades e as grandes terras. E as pequenas, as estranhas terras das Estremas Exteriores, também essas.

Navegar direto pelo Passo do Dragão, lá longe, para oeste. Ou para norte, até às massas flutuantes de gelo e daí para a Terra de Hogen. Dizem alguns que é uma terra maior que todo o Arquipélago, outros que se trata apenas de meros recifes e rochedos com gelo entre eles. Ninguém sabe. Gostaria de ver as baleias nos mares setentrionais… Mas não posso. Tenho de ir para onde sou obrigado a ir e voltar as costas às margens brilhantes. Tive demasiada pressa, agora já não me resta tempo. Troquei toda a luz do Sol e as cidades e as terras distantes por uma mão-cheia de poder, por uma sombra, pela treva.

E assim, como é próprio dos magos, transformou Gued o seu temor e mágoa em canção, num breve lamento, semicantado, que não era apenas para ele. E o amigo, em resposta, citou as palavras do herói do Feito de Erreth-Akbe:

— Ah, possa eu ver uma vez mais o claro lar do mundo, as brancas torres de Havnor…

E assim foram navegando na sua estrita rota, sobre as vastas e ermas águas. O mais que viram nesse dia foi um cardume de pequenos peixes prateados a nadarem para sul. Mas nunca um golfinho a saltar, nem o vôo de gaivota ou andorinha-do-mar riscando o ar cinzento. À medida que o leste escurecia e o oeste se avermelhava, Vetch serviu comida, dividindo-a entre eles, e disse:

— Temos aqui o resto da cerveja. Lembro quem pôs o barril a bordo para homens sedentos em tempo frio, a minha irmã Mil-em-rama.

Perante estas palavras, Gued abandonou os seus sombrios pensamentos e a contemplação do mar, e fez também ele uma saúde a Mil-em-rama, talvez mais sentida que a do irmão. Pensar nela trouxe-lhe à mente o sentido da sua doçura infantil e judiciosa. Ela era diferente de qualquer outra pessoa que ele tivesse conhecido. (E que rapariga tinha ele conhecido alguma vez? Mas isso nem lhe passou pela cabeça.)

— Ela é como um pequenino peixe, um vairão, que nada numa enseada de águas límpidas — disse ele. — Parece indefesa e, no entanto, não consegues agarrá-la.

Ouvindo-o, Vetch olhou-o de frente e sorriu.

— És verdadeiramente um mago nato — disse ele. — O nome-verdadeiro dela é Kest.

Na Antiga Fala, como Gued bem sabia, kest é vairão, e isto confortou-lhe o coração. Mas, pouco depois, disse em voz baixa:

— Se calhar não me devias ter dito o nome dela.

Mas Vetch, que não o fizera impensadamente, respondeu:

— O nome dela está tão seguro contigo como comigo. E, além disso, tu soubeste-o antes de eu o dizer…

A oeste, o vermelho tornou-se cinza, e o cinzento reduziu-se a negro. Céu e mar estavam totalmente escuros. Gued estendeu-se para dormir no fundo do barco, enrolado no seu manto de lã e peles. Vetch, segurando o cabo da vela, cantou suavemente trechos do Feito de Enlad, onde se conta como o mago Morred, o Branco, deixou Havnor no seu navio longo sem remos e, chegado à Ilha de Soléa, viu Elfarran nos pomares, na Primavera. Gued deixou-se dormir antes que a canção chegasse ao triste fim dos seus amores. A morte de Morred, a ruína de Enlad, as ondas marinhas, alterosas e amargas, submergindo os pomares de Soléa. Perto da meia-noite acordou e voltou a vigiar, enquanto Vetch dormia. O pequeno barco avançava célere sobre o mar agitado, fugindo ao vento que lhe impelia a vela, correndo às cegas pela noite fora. Mas as nuvens tinham-se dissipado a espaços e, antes da madrugada, uma Lua delgada, espreitando entre nuvens de contornos acastanhados, lançava uma luz pálida sobre o mar.

— A Lua empalidece perante a sua escuridão — murmurou Vetch, acordado pelo amanhecer, num momento em que o vento frio abrandou. Gued ergueu os olhos para o meio anel branco sobre as águas que, a leste, empalideciam, mas nada disse. A lua nova que se segue ao Regresso-do-Sol tem o nome de Pousios e é o pólo contrário dos dias da Lua e da Longa Dança do Verão. É uma altura desafortunada para os viajantes e os doentes. Durante os Pousios não se dão nomes às crianças, não se cantam Feitos, não se afia espadas nem instrumentos de corte e não se fazem juramentos. E o eixo negro do ano, quando todas as coisas que se fazem saem mal.

Por três dias navegaram a partir de Soders, seguindo aves marinhas e algas da costa até Pelimer, uma pequena ilha que se ergue como uma corcunda bem alto acima dos mares cinzentos. As gentes falavam Hardic mas à sua própria maneira, estranha mesmo para os ouvidos de Vetch. Ali desceram os jovens a terra para obterem água e algum descanso do mar e, a princípio, foram bem recebidos, com espanto e comoção. Havia um bruxo na principal vila da ilha, mas era louco. Só falava da grande serpente que ia devorando as fundações de Pelimer, pelo que em breve a ilha partiria à deriva, como um barco com as amarras cortadas, e deslizaria até cair da beira do mundo. Começou por acolher cortesmente os jovens feiticeiros mas, enquanto falava da serpente, começou a olhar de revés para Gued. E depois passou a injuriá-los, ali no meio da rua, acusando-os de serem espiões e servos da Serpente-do-Mar. A partir daí, os pelimerianos passaram a olhá-los friamente porque, embora louco, sempre era o seu feiticeiro. E assim Gued e Vetch não prolongaram a sua estadia, mas antes partiram de novo antes de cair a noite, rumando mais uma vez para sul e leste.