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— Agora és um de nós.

Mas Jaspe tinha uma maneira de falar acompanhada de ligeiro sorriso que levava Gued a tentar descobrir alguma troça oculta nas suas delicadas palavras. Por isso respondeu, carrancudo:

— Serão as roupas que fazem o mago?

— Não — retorquiu o rapaz mais velho. — Embora eu já tenha ouvido dizer que são as maneiras que fazem o homem… Onde queres ir agora?

— Onde tu queiras. Eu não conheço a casa.

Jaspe levou-o consigo pelos corredores da Casa Grande, mostrando-lhe os pátios descobertos e as salas abobadadas, a Sala das Estantes onde eram guardados os livros da antiga ciência e os tomos de runas, o grande Salão da Lareira onde toda a escola se reunia nos dias festivos e, no andar superior, nas torres e sob os telhados, as pequenas celas em que dormiam alunos e Mestres. A de Gued era na Torre Sul, com uma janela que dava para os íngremes telhados da vila de Thwil e, por sobre estes, para o mar.

Tal como as outras celas de dormir, não tinha quaisquer móveis para além de um colchão de palha a um canto.

— Vivemos aqui de uma maneira muito simples — disse Jaspe. — Mas espero que não te incomode.

— Já estou habituado — retorquiu Gued. E depois, tentando mostrar-se à altura daquele jovem tão delicado e desdenhoso, acrescentou: — Suponho que não seria o teu caso, quando para aqui vieste.

Jaspe olhou-o e o seu olhar dizia claramente, sem palavras: «O que poderias tu supor alguma vez acerca daquilo a que eu, filho do Senhor do Domínio de Eolg na Ilha de Havnor, estou ou não habituado?» Mas o que Jaspe disse em voz alta foi apenas:

— Vem por aqui.

Enquanto estavam no andar superior, tinha soado um gongo e desceram ambos para a refeição do meio-dia na Mesa Grande do refeitório, juntamente com uma centena ou mais de rapazes e adolescentes. Cada um servia-se pessoalmente, brincando com os cozinheiros através dos postigos da cozinha que abriam para o refeitório, enchendo o prato de grandes tigelas de comida que fumegavam sobre os peitoris, sentando-se à Mesa Grande nos lugares que mais lhes agradavam.

— Dizem — contou Jaspe a Gued — que, por muitos que se sentem a esta mesa, há sempre lugar.

O certo é que havia espaço, tanto para muitos grupos barulhentos de rapazes que falavam pelos cotovelos e comiam vorazmente, como para indivíduos mais velhos, com os seus mantos cinzentos presos no pescoço com fechos de prata, que se sentavam mais comedidamente aos pares ou sozinhos, de rostos graves e meditativos, como quem tem muito em que pensar.

Jaspe levou Gued a sentar-se junto de um companheiro corpulento chamado Vetch, que pouco falava mas absorvia a comida com um apetite voraz. Tinha o sotaque da Estrema Leste e era muito escuro de pele, não castanho-avermelhado como Gued e Jaspe e a maioria das gentes do Arquipélago, mas castanho-quase-negro. Era simples e pouco delicado de maneiras. Queixou-se do jantar depois de o ter comido, mas em seguida, virando-se para Gued, acrescentou:

— Pelo menos não é uma ilusão, como a maior parte das coisas por aqui. Isto sempre se agarra aos ossos.

Gued não entendeu o que ele poderia querer dizer, mas sentiu uma certa simpatia pelo rapaz e ficou satisfeito por permanecer com eles depois da refeição.

Foram passear pela vila, a fim de Gued aprender a orientar-se por lá. Por poucas e curtas que fossem as ruas de Thwil, viravam e contorciam-se bizarramente por entre as casas de altos telhados e era fácil uma pessoa perder-se nelas. Era uma estranha vila, como estranha era a sua gente, pescadores, trabalhadores e artífices como quaisquer outros, mas tão habituados à feitiçaria, que na Ilha dos Sages está sempre em ação, que eles próprios também já pareciam quase feiticeiros. Falavam (como Gued pudera verificar) por enigmas e nenhum deles piscaria sequer os olhos se visse um rapaz transformar-se em peixe ou uma casa erguer-se de repente nos ares. Tomando tais coisas por brincadeira de estudantes, continuariam a arranjar sapatos ou a desmanchar borregos, como se nada fosse.

Passando pela Porta Traseira e dando a volta pelos jardins da Casa Grande, os três rapazes atravessaram as águas claras do rio, o Thwilburn, por uma ponte de madeira e prosseguiram para norte, por entre bosques e pastagens. O caminho subia, serpenteante. Passaram por carvalhais onde a sombra era densa, mau grado o brilho do sol. Havia um bosque para o lado esquerdo e não muito afastado, mas que Gued nunca conseguia ver perfeitamente. O caminho também nunca lá chegava, embora parecesse estar sempre prestes a fazê-lo. Não era sequer capaz de descortinar de que árvores se tratava. Vetch, reparando em como Gued o fitava, disse suavemente:

— Aquele é o Bosque Imanente. Não podemos lá entrar ainda…

Nas pastagens aquecidas pelo sol, desabrochavam flores amarelas.

— Erva-fagulha — disse Jaspe. — Cresce onde o vento deixou cair as fagulhas do incêndio de Ilien, quando Erreth-Akbe defendeu as Ilhas Interiores contra o Senhor do Fogo.

Soprou uma corola já seca e as sementes, soltando-se, ergueram-se no vento, ao sol, como fagulhas ardentes.

O caminho, sempre subindo, conduziu-os até à base e depois em volta de um grande monte verde, o monte que Gued avistara do navio, ao penetrarem nas águas encantadas da Ilha de Roke. Chegados à encosta, Jaspe deteve-se.

— Na minha terra, em Havnor — disse ele —, ouvi falar muito da feitiçaria gontiana, e sempre bem, por isso durante muito tempo desejei ver como seria. Agora, temos aqui um homem de Gont e estamos na encosta do Cabeço de Roke, cujas raízes se estendem até ao centro da terra. Aqui, todos os encantamentos são fortes. Faz-nos um truque, Gavião. Mostra-nos o teu estilo.

Gued confuso e surpreendido, nada disse.

— De outra vez, Jaspe — interpôs Vetch com o seu modo simples. — Deixa-o sossegado.

— Ora, ele há de ter ou talento ou poder, senão o porteiro não o teria deixado entrar. Por que não havia de o mostrar, agora tanto como de outra vez? Não é verdade, Gavião?

— Tenho os dois, o talento e o poder — disse Gued. — Mostra-me o gênero de coisa de que estás a falar.

— Ilusões, é claro… truques, jogos de aparência. Como este, vê!

Apontando um dedo, Jaspe pronunciou algumas palavras estranhas e no sítio para onde ele apontava, por entre a erva verde da encosta, um fiozinho de água gotejou, cresceu e por fim jorrou uma nascente e a água correu encosta abaixo. Gued meteu a mão na corrente e sentiu-a úmida; bebeu dela e era fresca. E apesar de tudo não matava a sede, pois era apenas ilusão. Com outra palavra, Jaspe fez parar a água e a erva ficou a agitar-se, seca, à luz do Sol.

— Agora é a tua vez, Vetch — disse ele com o seu sorriso insolente.

Vetch coçou a cabeça com ar macambúzio, mas pegou num bocado de terra e começou a cantar desentoadamente sobre ela, enquanto a ia moldando com os seus dedos escuros e apertando-a, esfregando-a, dando-lhe forma. E de súbito o pedacinho de terra tornou-se numa criatura pequena, como um abelhão ou moscardo, que voou zumbindo por sobre o Cabeço de Roke e desapareceu.

Gued quedou-se a olhar, desanimado. Que sabia ele além de simples bruxarias, esconjuros para chamar cabras, curar verrugas, mover cargas pesadas ou consertar bilhas?

— Eu não faço truques como esses — acabou por dizer. Para Vetch, isto fora o suficiente e dispunha-se a seguir caminho. Mas Jaspe perguntou:

— Por que não?

— A feitiçaria não é um jogo. Nós, Gontianos, não a usamos por prazer ou por vaidade — respondeu Gued altivamente.

— Então usam-na porquê…? — inquiriu Jaspe. — Por dinheiro?

— Não…

Mas Gued não conseguia pensar em mais nada que ocultasse a sua ignorância e lhe poupasse o orgulho. Jaspe riu, mas não de modo desagradável. Depois voltou a pôr-se a caminho, conduzindo-os ao redor do Cabeço de Roke. E Gued seguiu-o, taciturno e de coração pesado, sabendo que tinha agido como um tolo e culpando Jaspe por isso.