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Nessa noite, enquanto jazia enrolado no seu capote e sobre a enxerga da sua fria cela de pedra sem luz, no extremo silêncio da Casa Grande de Roke, a estranheza do local e todos os esconjuros e encantamentos que ali vira começaram a pesar dolorosamente sobre ele. A escuridão rodeava-o, enchia-o o temor. Só desejava poder estar em qualquer lado que não fosse Roke. Mas Vetch assomou à porta, uma pequena bola azulada de fogo-fátuo a bailar-lhe sobre a cabeça para iluminar o caminho, e perguntou se podia entrar e conversar um bocado. Interrogou Gued sobre Gont e depois falou com carinho das suas próprias ilhas, na Estrema Leste, descrevendo como o fumo das lareiras da aldeia se espalha ao anoitecer por entre as pequena ilhas, com seus nomes pitorescos: Korp, Kopp e Holp, Venway e Vemish, Iffish, Koppish e Sneg. Quando desenhou a forma dessas terras nas pedras do chão com o dedo, para mostrar a Gued como se dispunham, as linhas que ele traçou brilharam muito levemente como se desenhadas com uma varinha de prata, e assim ficaram por um instante antes de se desvanecerem. Vetch estava há três anos na Escola e em breve receberia o título de Mágico. Pensava tanto em praticar as artes menores da magia como um pássaro em voar. Mas havia um talento maior, inato, que ele possuía, a arte da bondade. Nessa noite, e sempre daí em diante, ofereceu e deu a Gued amizade. Uma amizade firme e aberta que Gued não podia deixar de retribuir.

Contudo, Vetch era também amigo de Jaspe, que levara Gued a fazer figura de tolo naquele primeiro dia no Cabeço de Roke. Gued não o conseguia esquecer e, ao que parecia, Jaspe também não, pois falava-lhe sempre com voz delicada e sorriso trocista.

O orgulho de Gued não se deixava abater nem aceitava condescendências. Jurou que havia de provar a Jaspe, e a todos os outros de quem Jaspe era uma espécie de chefe, quão grande o seu poder realmente era — um dia. Porque, com todos os seus belos truques, nenhum deles salvara uma aldeia usando feitiçaria. De nenhum deles Óguion escrevera que havia de ser o maior feiticeiro de Gont.

Assim, reforçando o seu orgulho, aplicou toda a força de vontade ao trabalho que lhe davam, às lições, artes, histórias e talentos ensinados pelos Mestres de Roke com seus mantos cinzentos, os mestres a quem chamavam Os Nove.

Uma parte de cada dia, estudava com o Mestre Chantre, aprendendo os Feitos dos heróis e os Lais de sabedoria, começando com a mais antiga de todas as canções, a Criação de Éa. Depois, com uma dúzia de outros rapazes, praticava com o Mestre Chave-do-Vento as artes do vento e do tempo. Passavam os longos e soalheiros dias da Primavera e início do Verão na baía de Roke, em pequenos barcos, praticando o governar da embarcação pela palavra, o acalmar das vagas, o falar ao vento do mundo e o fazer levantar o vento mágico. Estes são talentos particularmente intrincados e a cabeça de Gued levou não poucas pancadas da barra da vela quando o barco se inclinava contra um vento que de súbito o impelia para trás, ou quando o dele e outro colidiam embora tivessem toda a baía para navegar, ou ainda quando os três rapazes do seu barco iam todos à água, tendo-se a embarcação inundado com uma grande onda involuntariamente formada. Noutros dias, tinham expedições mais calmas em terra, com o Mestre das Ervas, que ensinava as características e as propriedades das coisas que crescem da terra. E havia o Mestre de Mão que ensinava prestidigitação, malabarismo e as artes menores de Mudar.

Gued tinha aptidão para todos estes estudos e, após um mês, passava à frente de rapazes que tinham chegado a Roke um ano antes dele. Em particular, os truques de ilusão eram-lhe tão fáceis que parecia ter nascido já a sabê-los e precisava apenas de ser recordado. O Mestre de Mão era um velhote alegre e simpático, infinitamente encantado com a inteligência e beleza das artes que ensinava. Gued em breve deixou de sentir por ele qualquer temor e continuamente o instava para que lhe ensinasse este esconjuro e mais aquele. E o Mestre sorria sempre e mostrava-lhe o que ele queria. Mas certo dia, com a intenção de finalmente humilhar Jaspe, Gued disse ao Mestre de Mão no Pátio da Aparência:

— Senhor, todas estas encantamentos se parecem muito. Sabendo uma, sabem-se todas. E logo que paramos de tecer o feitiço, a ilusão desvanece-se. Ora, se eu transformar um seixo num diamante — e assim o fez com uma palavra e uma sacudidela do pulso —, o que deverei fazer para que o diamante permaneça um diamante? Como podemos fechar o esconjuro de Mudar e fazer com que dure?

O Mestre de Mão olhou para a jóia que cintilava na mão de Gued, brilhante como a mais preciosa gema no tesouro de um dragão. O velho Mestre murmurou uma palavra, «Tolk», e ali estava de novo o seixo, já não uma preciosidade mas um pedaço grosseiro de pedra cinzenta. O Mestre pegou-lhe e manteve-o na palma da sua própria mão.

— Isto é uma pedra. Tolk na Língua Verdadeira — disse ele, olhando suavemente para Gued. — Um pedaço da pedra de que é feita a Ilha de Roke, um pouco da terra firme em que vivem os homens. É ela própria. Faz parte do mundo. Através da Ilusão-Mudança podes fazer com que pareça um diamante… ou uma flor, uma mosca, um olho, uma labareda… — E a pedra ia mudando de forma para forma, à medida que ele as nomeava, até ser de novo pedra. — Mas isto é mera aparência. A ilusão engana os sentidos do observador, fazendo com que ele veja, ouça e sinta que a coisa mudou. Mas isso não muda a coisa. Para transformares esta pedra num diamante, terás de mudar o seu nome-verdadeiro. E fazer isso, meu filho, mesmo a uma tão ínfima migalha do mundo, significa mudar o mundo. Pode ser feito. Sem dúvida que pode ser feito. Essa é a arte do Mestre da Mudança e há de vir a aprendê-la, quando estiveres pronto a aprendê-la. Mas não deverás mudar uma coisa, seja ela um seixo ou um grão de areia, antes de saberes o bem e o mal que esse ato irá acarretar. O mundo está em harmonia, em Equilíbrio. O poder de Mudar e de Invocar de um feiticeiro pode abalar a harmonia do mundo. E é perigoso, esse poder. É terrivelmente perigoso. Tem de se submeter ao saber e servir a necessidade. Acender uma vela é lançar uma sombra…

Voltou a olhar para o seixo e, falando agora com menos gravidade, acrescentou:

— Uma pedra é também uma coisa boa, sabes? Se as Ilhas de Terramar fossem todas feitas de diamante, bem dura seria a nossa vida aqui. Diverte-te com as ilusões, rapaz, e deixa que as pedras sejam pedras.

Sorriu, mas Gued sentiu-se insatisfeito. Inste-se um mago para que revele os seus segredos e é vê-lo logo a falar, como Óguion, sobre o equilíbrio e o perigo e a escuridão. Mas de certeza que um feiticeiro, um dos que tenham ido além destes truques infantis de ilusão e alcançado as verdadeiras artes de Invocar e Mudar, seria suficientemente poderoso para fazer o que lhe agradasse, equilibrando o mundo como melhor lhe parecesse e afastando as trevas com a sua própria luz.

No corredor, encontrou Jaspe que, desde que as façanhas de Gued tinham começado a ser louvadas em toda a Escola, falava com ele de um modo que parecia mais amigável, mas era mais trocista.

— Pareces taciturno, Gavião — disse-lhe o outro. — Será que te correram mal os truques de malabarismo?

Tentando, como sempre, pôr-se em pé de igualdade com Jaspe, Gued respondeu à pergunta, ignorando o seu tom irônico.

— Estou farto de malabarismos, farto destes truques de ilusão, que só servem para divertir senhores ociosos nos seus castelos e domínios. A única verdadeira magia que até agora me ensinaram aqui em Roke foi fazer fogos-fátuos e algum trabalho com o tempo. O resto não passa de tontice.

— Mas até a tontice é perigosa — retorquiu Jaspe —, nas mãos de um tonto.