Perante isto, Gued voltou-se como se o tivessem esbofeteado e deu um passo na direção de Jaspe. Mas o rapaz mais velho sorriu como se não houvesse qualquer intenção insultuosa nas suas palavras, fez uma inclinação de cabeça à sua rígida e elegante maneira, e foi-se embora.
Ali parado com a raiva a ferver-lhe no coração, vendo Jaspe a afastar-se, Gued jurou a si próprio vencer o seu rival, e não num simples desafio de ilusões, mas num teste de poder. Ali daria as suas provas e humilharia Jaspe. Não ia deixar que aquele indivíduo se ficasse a olhá-lo de cima, elegante, desdenhoso e odiento.
Gued não se deteve a pensar por que seria que Jaspe o podia odiar. Sabia apenas por que odiava Jaspe. Os outros aprendizes cedo tinham percebido que raramente se podiam equiparar a Gued, quer a brincar quer a sério, e diziam dele, uns como louvor e outros por despeito: «É um feiticeiro nato, nunca nos deixará batê-lo.» Só Jaspe nunca o louvara nem evitara, limitando-se simplesmente a olhá-lo de cima, com um ligeiro sorriso. E assim Jaspe era o único que se erguia como seu rival, o único que teria de ser humilhado.
Não via, ou não queria ver, que naquela rivalidade, a que ele se apegava e que alimentava como parte do seu próprio orgulho, houvesse o que quer que fosse do perigo e da escuridão, contra os quais o Mestre de Mão tão brandamente o alertara.
Quando não era a pura raiva que o conduzia, Gued sabia perfeitamente que ainda não estava à altura de Jaspe ou de qualquer dos rapazes mais velhos, e por isso continuou a trabalhar e a comportar-se como de costume. No final do Verão, o trabalho teve um certo decréscimo, pelo que havia mais tempo para diversões, como as corridas de barcos enfeitiçados lá em baixo no porto, demonstrações de ilusão no pátios da Casa Grande e, nas longas noites, nos bosques, loucos jogos de escondidas, em que tanto os que se escondiam como os que procuravam estavam invisíveis e só as vozes se moviam, rindo e gritando, por entre as árvores, seguindo e evitando os rápidos e trêmulos fogos-fátuos. Depois, quando o Outono chegou, entregaram-se de novo às suas tarefas, praticando novas magias. E assim, rápidos, passaram os primeiros meses de Gued em Roke, plenos de paixão e maravilha.
No Inverno foi diferente. Foi enviado com outros sete rapazes através da Ilha de Roke até ao cabo no extremo norte, onde se ergue a Torre Isolada. Ali, sozinho, vivia o Mestre dos Nomes, que era tratado por um nome que não tinha significado em língua alguma, Kurremkarmerruk. Em quilômetros ao redor da torre não havia quintas ou habitações. Soturna, erguia-se sobre as falésias setentrionais, cinzentas rolavam as nuvens sobre o mar invernoso, infindáveis eram as listas, as fileiras, as séries de nomes que os oito pupilos do Mestre dos Nomes tinham de aprender. No meio deles, na ala mais alta da torre, Kurremkarmerruk, sentado num caldeirão alto, ia escrevendo listas de nomes que tinham de ser memorizados antes que a tinta se desvanecesse à meia-noite, deixando de novo o pergaminho em branco. Ali fazia sempre frio, o escuro era muito e o silêncio permanente só era interrompido pelo arranhar da pena do Mestre e, quiçá, pelo suspiro de algum aluno obrigado a aprender, antes da meia-noite, o nome de cada cabo, ponta, baía, estreito, enseada, canal, porto de abrigo, baixios, recifes e rochas das costas de Lossau, uma pequena ilha do Mar de Plen. E se algum estudante se queixava, o Mestre talvez não dissesse nada, limitando-se a aumentar ainda mais a lista, ou poderia dizer: «Aquele que pretende ser Mestre do Mar tem de saber o nome verdadeiro de cada gota de água que há no mar.»
Gued suspirava por vezes, mas nunca se queixava. Via que, naquela poeirenta e infindável questão de aprender o nome-verdadeiro de cada local, coisa e pessoa, se açoitava o poder a que ele aspirava, como uma pedra preciosa no fundo de um poço seco. Porque é nisso que consiste a verdadeira magia, o dar o verdadeiro nome a cada coisa. Assim lhes dissera Kurremkarmerruk, uma vez, na primeira noite que tinham passado na Torre. Não o voltara a repetir, mas Gued recordava cada palavra.
— Muitos magos de grande poder — dissera o Mestre — passaram toda a sua vida na tentativa de descobrir o nome de uma única coisa, um único nome, oculto ou perdido. E mesmo assim as listas não estão completas. Nem o estarão, até ao fim do mundo. Escutem e verão porquê. No mundo sob o Sol e no outro mundo onde não existe Sol, muito há que nada tem a ver com o homem nem com a fala do homem, e há poderes para além do nosso poder. Mas a magia, a verdadeira magia, só é realizada por aqueles seres que falam a língua Hardic de Terramar, ou a Antiga Fala de que ela derivou. Essa é a língua que os dragões falam, a língua falada por Segoy que fez as ilhas do mundo, a língua dos nossos lais e canções, dos nossos esconjuros, encantamentos e invocações. As suas palavras jazem ocultas e modificadas entre as nossas palavras Hardic. Nós chamamos à espuma das ondas sukien. Essa palavra é formada por duas palavras da Antiga Fala, suk, pena, e inien, o mar. Vós tendes de usar o seu nome-verdadeiro na Antiga Fala, que é essa. Qualquer bruxa conhece algumas dessas palavras da Antiga Fala, um mago conhece muitas. Mas há muitas mais, e algumas perderam-se ao longo das idades, e outras foram ocultas, e outras ainda só são conhecidas dos dragões e dos Antigos Poderes da Terra, e algumas há que não são conhecidas por criatura viva alguma. E nenhum homem as pôde aprender a todas, pois, para essa língua, não existe fim. E a razão é esta. O nome do mar é inien, tudo bem. Mas o que nós chamamos Mar Interior tem também o seu próprio nome na Antiga Fala. Dado que nada pode ter dois nomes verdadeiros, inien não pode deixar de significar «todo o mar à exceção do Mar Interior». E, claro, nem sequer significa isso, porque há mares, baías e estreitos sem conta, cada um com o seu próprio nome. Assim, se um Mago-Senhor-do-Mar fosse suficientemente louco para lançar um feitiço de tempestade ou calmaria sobre todo o oceano, esse feitiço teria de conter, não só a palavra inien, mas também o nome de cada extensão, pedaço e parte do mar através de todo o Arquipélago e todas as Estremas exteriores e para além destas até onde os nomes deixam de existir. Deste modo, é precisamente aquilo que nos confere o poder para operar a magia que estabelece os limites desse poder. Um mago só pode controlar o que lhe está próximo, o que ele pode nomear exata e completamente. E é bom que assim seja. Se assim não fora, a maldade dos poderosos ou a loucura dos sábios já há muito teria tentado mudar o que não pode ser mudado, e a Harmonia perder-se-ia. O mar, sem equilíbrio, devastaria as ilhas onde nós tão perigosamente habitamos e, no velho silêncio, todas as vozes e todos os nomes se perderiam.
Gued meditou longamente nestas palavras e elas calaram fundo na sua compreensão. Contudo, a majestade da tarefa não era suficiente para tornar menos árduo e árido o trabalho daquele longo ano na Torre. E, chegado o fim desse ano, Kurremkarmerruk disse-lhe: «Tiveste um bom começo.» E mais nada.
Os feiticeiros falam verdade e era verdade que toda a mestria de Nomes que Gued esforçadamente adquirira naquele ano era meramente o começo do que ele teria de continuar a aprender durante toda a vida. Foi-lhe permitido deixar a Torre Isolada mais cedo que os que tinham vindo com ele, porque aprendera mais depressa. Mas foi esse todo o louvor que recebeu.
Caminhou sozinho para sul, através da ilha, no início do Inverno e ao longo de estradas que não passavam por vila ou aldeia alguma e não eram percorridas por ninguém. Ao chegar a noite, choveu. Não disse qualquer encantamento para afastar de si a chuva porque o tempo de Roke estava na mãos do Mestre Chave-do-Vento e não era permitido nele interferir. Abrigou-se sob um grande salgueiro-chorão e ali, embrulhado no seu capote, pensou no velho mestre Óguion, que provavelmente estaria ainda entregue às suas perambulações outonais sobre os cumes de Gont, dormindo ao relento e com ramos despidos por único teto, a chuva caindo por únicas paredes. E isto fez Gued sorrir, porque pensar em Óguion lhe servia sempre de conforto. Adormeceu com o coração em paz, naquela fria escuridão cheia do murmúrio da água. Acordando com o raiar do sol, ergueu a cabeça. A chuva cessara. Viu, abrigado nas dobras do capote, um animalzinho enroscado a dormir, que ali se metera em busca de calor. Admirou-se ao vê-lo porque era um animal estranho e muito raro, um otaque.