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— O Gavião que não consegue voar…

— Será o jaspe uma pedra preciosa? — retorquiu Gued, arreganhando os dentes. — Ó Jóia entre os feiticeiros, ó Gema de Havnor, derrama o teu brilho sobre nós!

O rapaz que pusera as luzes a dançar fez descer uma delas e pô-la a dançar e a brilhar ao redor da cabeça de Jaspe. Com bem menos fleuma que o habitual, enrugando a testa, Jaspe afastou a luz e, com um gesto, apagou-a.

— Estou farto de rapazes e barulho e idiotices — disse.

— Estás a entrar na meia-idade, homem — comentou Vetch lá do alto.

— Se o que queres é silêncio e sombra — acrescentou um dos rapazes mais jovens —, podes sempre optar pela Torre.

E Gued perguntou-lhe:

— O que é então que queres, Jaspe?

— Quero a companhia dos meus iguais — disse Jaspe. — Anda daí, Vetch. Deixa os aprendizes com os seus brinquedos.

Gued voltou-se para encarar Jaspe.

— E o que têm os mágicos que os aprendizes não tenham? — inquiriu. A sua voz era tranqüila, mas todos os outros rapazes ficaram subitamente muito quietos porque, no tom em que falara, tal como no de Jaspe, o despeito entre eles soava evidente e claro como a lâmina de uma espada ao sair da bainha.

— Poder — disse Jaspe.

— Sou capaz de igualar o teu poder, ato por ato.

— Estás a desafiar-me?

— Estou a desafiar-te.

Vetch deixara-se cair até ao solo e veio interpor-se entre ambos, de rosto severo.

— Duelos de magia estão nos interditos, como muito bem sabem. Paremos com isto!

Tanto Gued como Jaspe guardaram o silêncio, pois era verdade que conheciam a lei de Roke. E sabiam também que Vetch era movido por amor, e eles próprios por ódio. E no entanto, a sua ira fora contrariada, mas não acalmada. E por fim, desviando-se um pouco para o lado como se pretendesse ser ouvido apenas por Vetch, Jaspe falou, arvorando o seu frio sorriso:

— Acho preferível recordares melhor ao teu amigo cabreiro a lei que o protege. Ele parece estar amuado. Será que acreditou mesmo que eu ia aceitar um desafio dele? De um tipo que cheira a cabras, um aprendiz que nem conhece a Primeira Mudança?

— Jaspe — disse Gued —, que sabes tu daquilo que eu sei? Durante um instante, sem que alguém tivesse dito alguma palavra, Gued desapareceu-lhes da vista e, onde ele estivera, planou um grande falcão, abrindo o bico adunco para gritar. Isto durou apenas um instante e logo Gued voltou a surgir à luz trêmula dos archotes, fitando Jaspe sombriamente.

Jaspe, atônito, dera um passo atrás. Mas logo encolheu os ombros e pronunciou uma só palavra:

— Ilusão.

Os outros sussurraram entre si, mas Vetch disse em voz alta:

— Aquilo não foi ilusão alguma. Foi mudança legítima. E basta. Jaspe, escuta…

— O bastante para mostrar que ele deitou uma olhadela ao Livro das Formas às escondidas do Mestre. E então? Continua, Cabreiro. Estou a divertir-me com essa ratoeira que estás a construir para ti próprio. Quanto mais tentas mostrar-te meu igual, tanto mais demonstras o que realmente és.

Perante isto, Vetch desviou-se de Jaspe e, muito suavemente, disse para Gued:

— Gavião, serás capaz de ser um homem e deitar isto para trás das costas? Anda comigo.

Gued olhou para o amigo e sorriu, mas o que respondeu foi:

— Guarda o Hoeg contigo por um bocado, sim?

E pôs o pequeno otaque, que como de costume tinha estado no seu ombro, nas mãos de Vetch. O animal nunca deixara mais ninguém tocar-lhe, mas desta vez passou para a mão de Vetch e, subindo-lhe pelo braço, foi aninhar-se no seu ombro, os grandes olhos brilhantes sempre a fitar o dono.

— E agora — disse Gued para Jaspe, tão calmo como antes —, que vais fazer para provar que me és superior, Jaspe?

— Eu não tenho de fazer nada, Cabreiro. E, no entanto, vou fazer. Vou dar-te uma oportunidade. A inveja rói-te por dentro como a lagarta na maçã. Deixemos sair a lagarta. Uma vez, junto ao Cabeço de Roke, gabaste-te de que os feiticeiros de Gont não usam a magia para brincar. Vem agora até ao Cabeço de Roke e mostra-nos para o que a usam então. E, depois, talvez eu te mostre um pouco de magia.

— Sim, bem gostaria de ver isso — retorquiu Gued. Os rapazes mais novos, habituados a vê-lo dar largas ao seu mau humor perante o mínimo indício de desprezo ou insulto, maravilhavam-se agora com a sua calma. Vetch observava-o também, não com admiração, mas com crescente temor. Tentou de novo intervir, mas Jaspe disse:

— Vá lá, Vetch, mantém-te fora disto. E o que vais fazer com a oportunidade que te dou, Cabreiro? Vais mostrar-nos uma ilusão, uma bola de fogo, um sortilégio para curar a sarna das cabras?

— Que gostarias tu que eu fizesse, Jaspe?

O outro encolheu os ombros.

— Cá por mim, podes invocar um espírito dos mortos!

— Fá-lo-ei.

— Não fazes.

E Jaspe fitou-o, olhos nos olhos, a raiva a sobrepor-se como uma chama ao seu desdém.

— Não fazes — repetiu. — Não consegues. Não fazes senão largar fanfarronadas…

— Pelo meu nome, fá-lo-ei!

Por um momento, todos ficaram rigidamente imóveis.

Libertando-se de Vetch, que pretendia impedi-lo à força, Gued saiu do pátio em largas passadas e sem olhar para trás. As luzinhas lá em cima apagaram-se, caíram. Jaspe hesitou por um segundo, mas logo seguiu os passos de Gued. E os outros vieram logo atrás, em silêncio, cheios de curiosidade e temor.

As encostas do Cabeço de Roke erguiam-se, escuras, penetrando o escuro da noite de Verão antes do nascer da Lua. A presença daquela colina onde tantas maravilhas tinham sido operadas era pesada, como um ar mais denso ao redor deles. Ao enveredarem pelo lado da colina iam pensando como as suas raízes eram profundas, mais profundas que o mar, até atingirem os velhos fogos, ocultos e secretos, no âmago do mundo. Pararam na vertente leste. As estrelas pareciam suspensas sobre a erva negra, acima deles, no cume da colina. Não soprava uma aragem.

Gued avançou mais alguns passos pela encosta acima, destacando-se dos outros. Depois voltou-se e, em voz clara, perguntou:

— Jaspe, queres que chame o espírito de quem?

— Chama quem quiseres. Nenhum te ouvirá. — E a voz de Jaspe tremia um pouco, de ira talvez.

Num tom suave, trocista, Gued retorquiu:

— Estarás com medo?

Mas nem deu ouvidos à resposta de Jaspe, se é que houve alguma. Deixara de se importar com Jaspe. Agora que estavam ali, sobre o Cabeço de Roke, o ódio e a raiva tinham-se dissipado, substituídos pela mais absoluta certeza. Não precisava já de invejar fosse quem fosse. Sabia que o seu poder, nessa noite, naquele escuro solo encantado, era maior do que alguma vez fora, preenchendo-o até o fazer vibrar com a sensação de uma força dificilmente mantida sob controlo. Sabia agora que Jaspe estava muito abaixo dele, que fora talvez enviado apenas para o trazer ali naquela noite, já não um rival mas um mero servo do destino de Gued. Sob os seus pés sentia as raízes da colina estendendo-se cada vez mais fundo para o seio da escuridão, sobre a sua cabeça via o fogo seco e longínquo das estrelas. Entre uma coisa e outra, todas as coisas eram suas para as determinar, para as comandar. Encontrava-se no centro do mundo.

— Não temas — disse com um sorriso. — Chamarei um espírito de mulher, a bela dama do Feito de Enlad.

— Mas ela morreu há mil anos atrás, os seus ossos jazem sob o mar de Éa, e talvez nem nunca tenha existido tal mulher.

— Será que os anos e a distância têm importância para os mortos? Será que as Canções mentem? — disse Gued, no mesmo tom de leve troça. E logo acrescentou: — Observem o ar entre as minhas mãos. — Voltou costas aos outros e imobilizou-se.