Com um movimento amplo e demorado, estendeu os braços no gesto de acolhimento que inicia uma invocação. Começou a falar.
Lera as runas desta Encantamento de Invocação no livro de Óguion há mais de dois anos e, desde então, não as voltara a ver. Fora na escuridão que as lera. E agora, naquela escuridão, era como se de novo as lesse, na página aberta perante ele em plena noite. Porém, agora compreendia o que lia, repetindo em voz alta as palavras, uma após outra, e discernia as diretivas de como a encantamento devia ser tecida com o som da voz e o mover de corpo e mão.
Os outros rapazes observavam, sem falar, sem se moverem para lá de algum arrepio, porque a grande encantamento começava a surtir efeito. A voz de Gued ainda suave, mas mudada, com uma profunda ressonância, e as palavras que dizia eram-lhes desconhecidas. Depois remeteu-se ao silêncio. De súbito, o vento ergueu-se, rugindo entre a erva. Gued deixou-se cair de joelhos e lançou um brado em voz alta. A seguir tombou para a frente como se quisesse abraçar a terra com os seus braços abertos e, ao voltar a erguer-se, segurava algo escuro nas mãos tensas, nos braços tensos, algo tão pesado que todo ele tremia no esforço para se pôr de pé. O vento quente soava lamentoso na erva da colina, negra e agitada. Se as estrelas continuavam a brilhar, ninguém as via.
As palavras da Encantamento sibilaram e murmuraram nos lábios de Gued e depois ele bradou, alta e claramente:
— Elfarran!
E uma vez mais bradou o nome: — Elfarran!
E pela terceira vez: — Elfarran!
A massa informe de escuridão que ele erguera do solo fendeu-se. Abriu-se e uma nesga de pálida luz brilhou entre os seus braços abertos, uma estreita oval erguendo-se do solo até à altura das suas mãos erguidas. Por um momento, na oval de luz, moveu-se uma forma, um vulto humano, uma mulher que olhava por sobre o ombro esquerdo. O seu rosto era belo, dolorido, cheio de temor.
Apenas por um momento brilhou o espírito. Depois a estreita oval entre os braços de Gued tornou-se mais nítida. Alargou e espalhou-se, uma fenda no escuro da terra e da noite, uma abertura rasgada no tecido do mundo. Através dela flamejou um terrível clarão. E através daquela brilhante e disforme brecha trepou algo de semelhante a um borrão de sombra negra, célere e hediondo, que se lançou diretamente sobre o rosto de Gued.
Recuando a cambalear sob o peso daquela coisa, Gued lançou um grito breve e rouco. O pequeno otaque que assistia a tudo empoleirado sobre o ombro de Vetch, o animal que não possuía voz, gritou também com força e saltou como que para atacar.
Gued tombou, debatendo-se e contorcendo-se, enquanto o brilhante rasgão na escuridão do mundo, acima dele, se alargava e estendia. Os rapazes que observavam a cena fugiram e Jaspe dobrou-se para o solo, a defender os olhos da terrível luz. Só Vetch correu em frente, para junto do amigo. Por isso foi ele o único a ver como o pedaço de sombra que se agarrara a Gued lhe rasgava a carne. Era como um animal negro, do tamanho de uma criança pequena, embora tão depressa parecesse inchar como encolher. E não tinha cabeça nem rosto, apenas as quatro patas armadas de garras com que agarrava e rasgava. Vetch soltou um soluço horrorizado, mas mesmo assim estendeu as mãos, numa tentativa para afastar de Gued aquela coisa. Mas antes que lhe tocasse, ficou como tolhido, incapaz de se mover.
O brilho intolerável empalideceu e, lentamente, os lados da fenda rasgada no mundo fecharam-se. Próximo, uma voz falava, tão suave como o sussurro de uma árvore, o murmúrio de uma fonte.
A luz das estrelas voltou de novo a brilhar e a erva da encosta tornou-se esbranquiçada sob a Lua acabada de nascer. A noite estava de novo sã. Restaurara-se e firmara-se o equilíbrio entre luz e sombra. A fera-de-sombra desaparecera. Gued jazia caído de costas, os braços abertos em cruz como se mantivesse ainda o gesto largo de boas-vindas e invocação. Tinha o rosto enegrecido de sangue e grandes manchas negras na camisa. Agachado no seu ombro, o pequeno otaque tremia. E acima dele erguia-se o vulto de um velho cuja capa reluzia palidamente sob o luar. O Arquimago Nemmerle.
A ponta do bordão de Nemmerle, argêntea, oscilava por sobre o peito de Gued. Baixou uma vez a tocá-lo suavemente sobre o coração, outra nos lábios, enquanto Nemmerle continuava a murmurar. Gued moveu-se, os seus lábios abriram-se, arquejando por ar. E então o velho Arquimago ergueu o bordão e apoiou-se nele pesadamente, a cabeça pendendo, como se mal tivesse energia para se manter em pé.
Vetch verificou que podia de novo mover-se. Olhando em redor, viu que já outros ali estavam, os Mestres da Invocação e da Mudança. Um ato de grande feitiçaria não se leva a cabo sem despertar a atenção de tais homens, e tinham processos para se aproximarem bem rapidamente quando a necessidade chamava, embora nenhum tivesse sido tão célere como o Arquimago. E mandaram então vir reforços, e alguns dos que vieram partiram levando o Arquimago, enquanto outros, com Vetch entre eles, transportavam Gued para os aposentos do Mestre das Ervas.
Durante toda a noite permaneceu o Mestre da Invocação sobre o Cabeço de Roke, de vigia. Mas ali, sobre a encosta onde a matéria do mundo fora rasgada, nada se movia. Nenhuma sombra veio rastejando através do luar em busca da fenda por onde regressar de novo ao seu próprio domínio. Fugira de Nemmerle, e das poderosas muralhas de magia que rodeavam e protegiam a Ilha de Roke, mas estava agora no mundo. Em qualquer parte desse mundo, ocultava-se. Se Gued tivesse morrido nessa noite, poderia ter tentado encontrar a portada que ele abrira e segui-lo até ao reino da morte, ou escapar-se para o ignoto lugar de onde viera. E por isso o Mestre da Invocação esperava no Cabeço de Roke. Mas Gued continuou vivo.
Tinham-no posto sobre um leito no aposento da cura e o Mestre das Ervas tratara as feridas que ele tinha no rosto, no pescoço e nos ombros. Eram feridas profundas, irregulares e malignas. O sangue negro que delas brotava não se estancava, escapando-se mesmo através dos sortilégios e das folhas de perriótea envolvidas em teias de aranha, apostas sobre elas. Cego e mudo, Gued permanecia mergulhado em febre como um graveto num fogo lento, e não havia encantamento que refrescasse o que o queimava.
Não muito longe, no pátio descoberto onde jorrava a fonte, também o Arquimago permanecia deitado e imóvel, mas frio, tão frio. Só os seus olhos viviam, observando o cair da água enluarada e o frêmito das enluaradas folhas. Os que estavam com ele não teciam encantamentos nem tentavam curas. Calmamente, falavam entre si de tempos a tempos e logo voltavam a observar o seu Senhor. E ele permanecia imóvel, o nariz adunco, a testa alta e o cabelo branco tornado ainda mais branco pelo luar, tudo com a cor do osso. Para dominar o encantamento incontrolado e afastar de Gued a sombra, Nemmerle esgotara todo o seu poder e com ele se perdera também a força do seu corpo. Estava a morrer. Mas a morte de um grande mago, que durante a sua vida muitas vezes caminhou pelas secas e abruptas encostas do reino da morte, é estranha coisa. Porque o homem moribundo não parte às cegas, mas com segurança, conhecendo o caminho.
E quando Nemmerle ergueu o olhar através das folhas da árvore, aqueles que estavam com ele não sabiam se ele observava as estrelas de Verão que o dia nascente ia empalidecendo, se essas outras estrelas que nunca se põem, acima das colinas que nunca vêem o amanhecer.
O corvo de Osskil, que fora o seu animal de estimação durante trinta anos, desaparecera. Ninguém vira para onde. «Voa à frente dele», disse o Mestre das Configurações que, com os outros, estava de vigília.
Quente e claro, o dia nasceu. A Casa Grande e as ruas de Thwil mantinham-se em silêncio. Nenhuma voz se ergueu até que, perto já do meio-dia, os sinos de ferro ergueram as suas vozes na Torre do Chantre, dobrando asperamente.
No dia seguinte, os Nove Mestres de Roke reuniram-se num local em algum lado sob as escuras árvores do Bosque Imanente. E mesmo aí ergueram ao seu redor nove muralhas de silêncio, para que nada, pessoa ou potência, pudesse falar-lhes ou ouvi-los enquanto escolhiam de entre os magos de toda Terramar aquele que seria o novo Arquimago. Guencher de Way foi o escolhido. De imediato se enviou um navio, através do mar Interior e até à Ilha de Way, para trazer o Arquimago de volta a Roke. O Mestre Chave-do-Vento, permanecendo de pé à popa, fez erguer o vento mágico a impelir a vela e rapidamente o navio se fez ao largo e desapareceu das vistas.