Havia talvez poucos motivos de orgulho neste primeiro magistério de Gued. Os feiticeiros treinados em Roke iam geralmente para cidades ou castelos, ao serviço de grandes senhores que os tinham em alta estima. No curso normal das coisas, aqueles pescadores de Baixo Torning não teriam tido entre eles mais que uma bruxa ou um simples mágico, para encantar as redes de pesca, cantar sobre os barcos novos e curar animais e homens dos seus padecimentos. Mas nos últimos anos o velho Dragão de Pendor tivera crias. Segundo se dizia, nove dragões tinham agora o seu covil nas torres em ruínas dos Senhores do Mar de Pendor, arrastando os ventres cobertos de escamas para cima e para baixo nas escadarias de mármore e através das portas arrombadas. Na falta de alimento naquela ilha morta, iriam levantar vôo dali em qualquer dos próximos anos, quando já estivessem grandes e a fome os acicatasse. Já se avistara um bando de quatro por sobre as costas do Sudoeste de Hosk, sem pousarem mas espiando do alto redis, celeiros e aldeias. A fome de um dragão é lenta a despertar mas difícil de saciar. Por isso os Ilhéus de Baixo Torning tinham enviado mensageiros a Roke pedindo um feiticeiro que protegesse a sua gente da ameaça que se perfilava no horizonte ocidental e o Arquimago considerara que o seu medo tinha razão de ser.
— É lugar onde não há conforto — dissera o Arquimago a Gued no dia em que lhe conferira o título de feiticeiro —, nem fama, nem riqueza, talvez nem sequer risco. Mesmo assim, irás?
— Irei — respondera Gued. E não fora só por obediência. Desde a noite no Cabeço de Roke, o seu anseio afastara-se tanto das idéias de fama e ostentação como em tempos delas se aproximara. Agora duvidava constantemente da sua força e temia ver o seu poder posto à prova. Contudo, a referência a dragões despertava-lhe fortemente a curiosidade. Em Gont, há muitas centenas de anos que não existem dragões. E dragão algum iria alguma vez voar suficientemente perto de Roke para ver a ilha ou lhe sentir o cheiro e os encantamentos que a protegiam. E por isso eram ali apenas assunto de contos e canções, coisas de que se falava mas não se viam. Gued aprendera tudo o que lhe fora possível sobre dragões na Escola, mas uma coisa é ler acerca de dragões e outra muito diferente encontrá-los face a face. A oportunidade brilhava agora à sua frente e por isso foi de todo o coração que respondeu «Irei».
O Arquimago Guencher acenara com a cabeça, mas a sua expressão era sombria.
— Diz-me — inquiriu por fim —, temes deixar Roke? Ou estás ansioso por partir?
— Uma coisa e a outra, meu Senhor.
Uma vez mais, Guencher acenou com a cabeça.
— Não sei se faço bem em te afastar da segurança em que estás aqui — disse muito lentamente. — Não consigo descortinar o teu caminho. Está todo envolto em trevas. E há um poder no Norte, algo que desejaria destruir-te, mas o que é e onde está, se no teu passado ou no teu caminho em frente, não o posso dizer. É tudo sombra. Quando os homens de Baixo Torning apareceram, pensei de imediato em ti, por me parecer um lugar seguro e remoto, onde poderias ter tempo para recobrar a tua força. Mas não sei se há algum lugar seguro para ti nem para onde te leva o teu caminho. Não queria enviar-te para a escuridão…
A princípio, a casa sob as árvores em flor pareceu a Gued um lugar animador. Ali viveu, observando freqüentemente o céu ocidental, mantendo o seu ouvido de feiticeiro atento ao som de asas cobertas de escamas. Mas não surgiu dragão algum. Gued pescava no seu pontão e cuidava da pequena horta. Passava dias inteiros a ponderar uma página ou uma linha ou uma palavra nos Livros do Saber que trouxera de Roke, sentado à sombra das árvores pendick, no Verão, enquanto o otaque dormia ao seu lado ou partia a caçar ratos nas florestas de erva e margaridas. E servia o povo de Baixo Torning como curandeiro e fazedor de tempo sempre que lhe pediam. Não lhe passava sequer pela cabeça que um feiticeiro pudesse envergonhar-se de praticar artes tão simples, porque ele fora um feiticeiro-criança entre gente mais pobre que esta. Porém, pouco recorriam a ele, olhando-o com um respeito temeroso, em parte por ele ser um feiticeiro vindo da Ilha dos Sages, em parte pelo seu silêncio e o seu rosto marcado por cicatrizes. Porque havia nele, embora jovem como era, algo que punha as pessoas pouco à vontade. Mesmo assim, fez um amigo, um construtor de barcos que habitava na ilha mais próxima para leste. O seu nome era Petchvarri. Tinham-se encontrado pela primeira vez no pontão deste último, onde Gued parara a vê-lo colocar o mastro de uma pequena embarcação. O homem olhara para o feiticeiro com um sorriso e dissera:
— Ora aqui está quase acabado o trabalho de um mês inteiro. Imagino que o poderias ter feito num minuto e apenas com uma palavra, não é, Senhor?
— Talvez pudesse — retorquiu Gued —, mas provavelmente afundar-se-ia no minuto seguinte, a não ser que eu mantivesse os sortilégios constantemente. Mas, se quiseres…
E interrompeu-se.
— E então, Senhor?
— Então temos aí uma pequena e bela obra. Nada lhe falta. Mas, se quiseres, posso lançar-lhe um feitiço de união para ajudá-lo a manter-se em boas condições, ou um de encontrar para o ajudar a voltar a casa, vindo do mar.
Gued falara de modo hesitante, não querendo ofender o artífice, mas o rosto de Petchvarri iluminou-se.
— O barco é para o meu filho, Senhor, e se pudesses lançar esses encantamentos sobre ele seria uma grande bondade e uma ação amiga.
E logo ali subiu ao pontão para apertar a mão de Gued e lhe agradecer.
Depois disso, aconteceu freqüentemente trabalharem em conjunto, com Gued a entretecer os seus encantamentos com o trabalho de Petchvarri nos barcos que este construía ou consertava e, em troca, aprendendo com o artífice como um barco era construído e também como era governado sem auxílio da magia, porque o ensino da simples arte de navegar fora um pouco deixado de lado em Roke. Gued e Petchvarri, com o filho pequeno deste, Aioeth, saíam muitas vezes pelos canais e lagoas, navegando à vela ou a remos neste ou naquele barco, até que Gued se tornou um muito razoável marinheiro e a amizade entre ele e Petchvarri se tornou ponto assente.
Ia já o Outono quase no fim, quando o filho do construtor de barcos adoeceu. A mãe mandou chamar a bruxa da Ilha de Tesk, que tinha bastante habilidade para curar, e tudo pareceu correr bem durante um dia ou dois. Porém, a meio de uma noite tempestuosa, Petchvarri veio bater desesperadamente à porta de Gued pedindo-lhe que fosse salvar a criança. Gued e ele correram para o barco e remaram a toda a pressa através da treva e da chuva até à casa de Petchvarri. Ali deparou Gued com a criança jazendo na sua cama grosseira, a mãe acocoradada ao lado, em silêncio, e a bruxa fazendo uma defumação com raiz de córlia e entoando o Cântico de Naguian, que eram os melhores artifícios de cura que ela possuía. Mas sussurrou para Gued:
— Senhor Feiticeiro, penso que esta febre seja a febre vermelha e a criança morrerá dela esta noite.
Quando Gued ajoelhou e apôs as mãos sobre a criança, pensou o mesmo e recolheu-se por um momento. Nos últimos meses da sua longa doença, o Mestre das Ervas ensinara-lhe muito da ciência de curar, e a primeira e última lição dessa ciência fora esta: Sara a ferida e cura a doença, mas deixa partir o espírito moribundo.
A mãe viu-lhe o movimento e o que este significava e lamentou-se em altas vozes, desesperada. Mas Petchvarri, inclinando-se para ela, disse:
— O Senhor Gavião vai salvá-lo, mulher. Não há por que gritar! Ele agora está aqui e pode fazê-lo.