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Ouvindo os lamentos da mãe e vendo a confiança que Petchvarri nele depositava, Gued sentiu que não podia desapontá-los.

Desconfiando do seu próprio parecer, pensou que talvez fosse possível salvar a criança se se conseguisse baixar a febre. E disse:

— Farei o melhor que souber, Petchvarri.

Começou a banhar o rapazinho com água da chuva, fria, que lhe trouxeram de fora da casa, acabada de cair, e a dizer um dos encantamentos de acalmar a febre. Mas o encantamento não agarrou nem se conjugou num todo e, subitamente, Gued teve a percepção de que a criança lhe estava a morrer nos braços.

Invocando todo o seu poder num só instante e sem pensar em si próprio, enviou o seu espírito atrás do espírito da criança para o trazer de volta a casa. E chamou-a pelo nome: «Aioeth!» Julgando ter ouvido fracamente uma resposta no seu ouvido interior, prosseguiu, chamando uma vez mais. Viu então o rapazinho a correr, longe e rápido, por uma escura encosta abaixo, no flanco de algum vasto monte. Não havia som. As estrelas por sobre o monte não eram estrelas que os seus olhos alguma vez tivessem visto. E, no entanto, sabia o nome das constelações: o Feixe, a Porta, Aquela Que Gira, a Árvore. Eram aquelas estrelas que nunca se põem, que não empalidecem com o nascer de dia algum. Seguira longe de mais a criança moribunda.

Ciente disto, viu-se sozinho na escura encosta. Era difícil voltar atrás, muito difícil.

Voltou-se lentamente. Lentamente avançou um pé para diante para subir de volta o monte, depois o outro. Passo a passo avançou, cada passo um esforço da sua vontade e cada um mais difícil que o anterior.

As estrelas permaneciam imóveis. Sobre o solo íngreme e seco não corria o sopro do vento. Em todo o vasto reino das trevas apenas ele se movia, lentamente, subindo. Chegou ao cume do monte e ali deparou com um muro baixo, de pedras. Mas do lado de lá do muro, em frente dele, havia uma sombra.

A sombra não tinha a forma de homem nem de fera. Era informe, dificilmente visível, mas segredava-lhe, embora sem palavras no seu segredar, e estendia-se para ele. E erguia-se do lado dos vivos enquanto ele permanecia do lado dos mortos.

Só tinha duas alternativas. Descer o monte em direção às terras desertas e às cidades sem luz dos mortos. Ou atravessar o muro, de regresso à vida, onde aquela coisa informe e maléfica esperava por ele.

Tinha nas mãos o seu bordão de espírito e ergueu-o bem alto. Com esse movimento, recobrou forças. E, ao mover-se para saltar o muro de pedras direito à sombra, o bordão soltou uma súbita chama branca, uma luz ofuscante naquele lugar sombrio. Saltou, sentiu-se cair e perdeu a visão.

Mas o que Petchvarri, a sua mulher e a bruxa viram foi isto: o jovem feiticeiro interrompera-se a meio da sua encantamento e, imóvel, permanecera por momentos com a criança nos braços. Depois depositara suavemente o pequeno Aioeth sobre a enxerga, endireitara-se e ficara em silêncio, o bordão na mão. De repente, erguera o bordão bem alto e este flamejara qual fogo branco, como se ele segurasse o raio no seu punho, e todas as coisas da cabana se destacaram, estranhas e nítidas, naquele clarão momentâneo. Quando os seus olhos recuperaram daquele ligamento, viram o jovem feiticeiro enrodilhado no chão de terra, junto à enxerga onde a criança jazia morta.

A Petchvarri parecera que também o feiticeiro estava morto. A mulher chorava, mas ele estava totalmente confuso. Contudo, a bruxa tinha algum conhecimento, por ouvir dizer, do que era a magia e dos modos como um verdadeiro feiticeiro pode deixar a vida, pelo que teve o cuidado de fazer com que Gued, por mais inanimado e frio que estivesse, não fosse tratado como um morto, mas como alguém doente ou em transe. Levaram-no para casa e deixaram uma velha a tomar conta dele e a verificar se dormia para despertar ou se iria dormir para sempre.

O pequeno otaque ocultava-se nas traves da casa, como era seu costume quando apareciam estranhos. Ali se quedou enquanto a chuva açoitava as paredes, o fogo esmorecia e a noite passava lentamente, deixando a velhota a cabecear ao lado do buraco do fogo. O otaque desceu então sorrateiramente e veio até onde Gued jazia, estendido e rígido, sobre a cama. Começou a lamber-lhe as mãos e os pulsos, longa e pacientemente, com a sua língua de um castanho de folha seca. Agachando-se junto à sua cabeça, lambeu-lhe a têmpora, a face marcada por cicatrizes e, suavemente, os olhos cerrados. E, muito lentamente, sob aquele toque suave, Gued voltou a si. Acordou, sem saber onde estivera, nem onde estava, nem o que era a tênue luz cinzenta esparsa no ar à sua volta, e que mais não era que a luz da aurora derramando-se sobre o mundo. Nessa altura, o otaque enroscou-se como de costume perto do seu ombro e deixou-se dormir.

Mais tarde, quando Gued reviu aquela noite em pensamento, compreendeu que se ninguém lhe tivesse tocado enquanto jazia assim com o espírito ausente, se ninguém o tivesse chamado de uma ou de outra forma, poderia ter ficado perdido para sempre. Fora apenas a sabedoria instintiva e irracional do animal que lambe o companheiro ferido para o confortar e, contudo, nessa sabedoria Gued descortinou algo de semelhante ao seu próprio poder, algo cujas raízes mergulhavam tão profundamente como as da feitiçaria. Daí em diante passou a acreditar que o homem sábio é aquele que nunca se coloca à parte das outras coisas vivas, sejam elas dotadas ou não de palavra, e em anos subseqüentes esforçou-se longamente por aprender o que pode ser aprendido, em silêncio, nos olhos dos animais, no vôo das aves, nos lentos e vastos gestos das árvores.

Agora já fizera, ileso e pela primeira vez, esse ir e voltar que só um feiticeiro pode fazer de olhos abertos e que nem o maior mago realiza sem perigo. Mas regressara para a dor e para o temor. A dor era pelo seu amigo Petchvarri, o temor por si próprio. Sabia agora por que motivo o Arquimago temera enviá-lo para longe de Roke, conhecia aquilo que escurecera e nublara a previsão que o mago fizera do seu futuro. Porque fora a própria escuridão que o esperava, a coisa inominada, o ser que não fazia parte do mundo, a sombra que ele libertara ou criara. Em espírito, acoitando-se no muro da fronteira entre a morte e a vida, esperara por ele todos esses longos anos. E ali o encontrara finalmente. Agora, seguir-lhe-ia o rasto, procurando aproximar-se dele, apoderar-se da sua força, sugar-lhe a vida e revestir-se da sua carne.

Pouco depois, sonhou com a coisa como se fosse um urso sem cabeça nem rosto. Viu-a andar às cegas, apalpando as paredes da casa, buscando a entrada. Nunca voltara a sonhar aquele sonho desde que se curara das feridas que a coisa lhe infligira. Ao acordar sentiu-se fraco e frio, e as cicatrizes no seu rosto e no seu ombro tinham voltado a repuxar e a doer.

Começou então um mau período. Quando sonhava com a sombra ou simplesmente pensava nela, sentia sempre aquele mesmo temor gelado. A percepção e o poder escorriam dele, deixando-o estúpido e desnorteado. Irritava-se com a sua covardia, mas isso não servia de nada. Procurou proteção, mas não havia nenhuma porque a coisa não era de carne e osso, nem viva, nem espírito, nem recebera nome, tendo por ser apenas o que ele próprio lhe dera — um poder terrível exterior às leis do mundo iluminado pelo Sol. Tudo o que dela sabia era que a coisa era atraída para ele, e tentaria, porque era a sua criatura, fazer através dele a sua vontade. Mas sob que forma poderia surgir, não tendo ainda uma forma real que lhe fosse própria, e como surgiria, e quando, isso não sabia ele.

Teceu barreiras de magia, todas as que pôde, em volta da sua casa e da ilha em que vivia. Mas essas muralhas de sortilégio têm de ser constantemente renovadas e em breve viu que, se esgotasse todas as suas forças nessas defesas, não teria qualquer préstimo para as gentes das ilhas. Que poderia fazer, entre dois inimigos, se de Pendor viesse um dragão?

Sonhou uma vez mais, mas desta vez, no sonho a coisa estava dentro da casa, ao lado da porta, adiantando-se para ele através do escuro e segredando palavras que ele não entendia. Acordou aterrorizado e mandou o fogo-fátuo a flamejar pelo ar, iluminando cada recesso da pequena casa até se assegurar de que não havia sombra alguma. Depois lançou lenha sobre as brasas na cova do lume e ali se sentou à luz da fogueira, ouvindo o vento de Outono dedilhando o colmo do telhado e uivando nas grandes árvores nuas, por cima da casa. E por muito tempo se quedou a pensar. Uma cólera antiga despertara no seu coração. Não iria suportar aquela espera desamparada, aquele ficar-se ali, encurralado numa ilhota, resmungando inúteis encantamentos de fechar e defender. Mas também não podia simplesmente fugir da ratoeira, pois para isso era necessário faltar à palavra dada aos ilhéus e deixá-los, sem defesa, perante a ameaça iminente do dragão. Só havia um caminho a seguir.