O coração de Gued alvoroçou-se no peito e ele apertou o bordão no punho e quedou-se tão imóvel como se quedara o dragão. Por momentos teve de combater uma esperança súbita e inesperada.
Não fora pela sua própria vida que ele viera fazer aquele trato. Um domínio, e apenas um, era o que ele podia exercer sobre o dragão. Pôs de lado a esperança e fez o que tinha de fazer.
— Não é isso que peço de ti, Yevaud.
Ao dizer o nome do dragão, foi como se mantivesse aquele enorme ser preso por uma trela delgada e segura, apertando-lha à volta do pescoço. Podia sentir a antiga malícia e experiência no trato com homens no olhar que o dragão pousava sobre ele, podia ver as garras de aço, cada uma tão longa como o antebraço de um homem, e o couro rijo como pedra, e o fogo fulminante que espreitava na goela do dragão. E, no entanto, a trela ia-se apertando, apertando.
De novo ergueu a voz:
— Yevaud! Jura pelo teu nome que tu e os teus filhos nunca se aproximarão do Arquipélago.
Súbitas chamas brotaram, brilhantes e ruidosas, das fauces do dragão e ele disse:
— Pelo meu nome o juro!
O silêncio estendeu-se então sobre a ilha e Yevaud baixou a enorme cabeça.
Quando voltou a erguê-la e olhou, o feiticeiro partira e a vela do barco não passava de um salpico branco sobre as ondas, a oriente, singrando em direção às férteis ilhas, quais pedras preciosas espalhadas pelos mares interiores. Então, enraivecido, o velho dragão de Pendor ergueu-se, quebrando a torre com o movimento serpenteante do seu corpo e batendo as asas, cuja envergadura abarcava toda a extensão da povoação em ruínas. Mas o seu juramento atava-lhe a vontade e não voou, nem então nem nunca, até ao Arquipélago.
6. PERSEGUIDO
Logo que Pendor se afundou abaixo da linha do horizonte atrás de si, Gued, rumando para leste, sentiu de novo o medo da sombra a entrar-lhe no coração. E era difícil passar do perigo nítido do dragão para aquele horror sem forma e sem esperança. Deixou que o vento mágico parasse de soprar e passou a navegar com o vento do mundo, pois não havia agora nele qualquer desejo de celeridade. Não tinha qualquer plano, nem sequer para o que deveria fazer. Tinha de fugir, como o dragão dissera. Mas para onde? Para Roke, pensou, dado que ao menos ali estaria protegido e poderia obter conselhos entre os Sages.
Contudo, primeiro tinha de ir uma vez mais a Baixo Torning, para fazer o seu relato aos Ilhéus.
Quando se soube que ele regressara, cinco dias depois de partir, os Ilhéus e metade das gentes da administração vieram, remando e correndo, para se reunirem ao seu redor, olhando-o e escutando-o. Contou a sua história e um dos homens disse:
— Mas quem viu essa maravilha de dragões mortos e dragões enganados? Então e se ele…
— Cala-te! — ordenou o Chefe dos Ilhéus, pois sabia, tal como a maioria de entre eles, que um feiticeiro pode ter maneiras subtis de dizer a verdade, pode mesmo guardar a verdade para si próprio, mas se diz alguma coisa, a coisa é como ele diz. Porque essa é a condição da sua mestria. E assim maravilharam-se e começaram a sentir que o medo se retirava deles, e logo começaram a regozijar-se. Comprimiram-se ao redor do seu jovem feiticeiro e pediram que voltasse a contar tudo o que se passara. Vieram mais ilhéus e pediram o mesmo. Ao cair da noite, já não era preciso que fosse ele a contar. Os ilhéus podiam fazê-lo por ele, e melhor. Já os chantres da aldeia tinham adaptado a narrativa a uma antiga melodia e começado a cantar a Canção do Gavião. Havia fogueiras acesas não apenas em Baixo Torning, mas também nas administrações para sul e leste. Os pescadores gritavam as novas de embarcação para embarcação, de ilha em ilha as novas iam correndo: «O mal foi evitado, os dragões nunca virão de Pendor!»
Essa noite, essa única noite, foi alegre para Gued. Não havia sombra que se pudesse aproximar dele através do brilho de todas aquelas fogueiras de agradecimento, ardendo em cada cume e em cada praia, ou através dos círculos de risonhos dançarmos que o cercavam, cantando em seu louvor, agitando os seus archotes no vento da noite outonal, fazendo cora que as fagulhas subissem, múltiplas, brilhantes e breves, levadas pela aragem.
No dia seguinte encontrou Petchvarri que lhe disse:
— Não te sabia tão poderoso, meu Senhor!
Havia temor nas suas palavras, porque se atrevera a encarar Gued como amigo, mas nelas havia também uma censura. Gued não salvara uma criancinha, embora fosse capaz de matar dragões. Depois disso, Gued voltou a sentir o mesmo mal-estar e a mesma impaciência que o haviam impelido para Pendor e o impeliam agora a abandonar Baixo Torning. No dia seguinte, se bem que todos o tivessem querido manter ali até ao fim da sua vida, para o louvarem e se gabarem dele, abandonou a casa na colina, sem mais bagagem que os seus livros, o bordão e o otaque aninhado sobre o ombro.
Partiu num barco a remos com um par de jovens pescadores de Baixo Torning, que pretendiam a honra de serem seus barqueiros. E sempre, enquanto remavam por entre a flotilha que pejava os canais orientais das Noventa Ilhas, sob as janelas e varandas de casas que se inclinam por sobre a água, para lá dos desembarcadouros de Nesh, das pastagens fustigadas pela chuva de Dromgan, dos pestilentos armazéns de óleo de Gueath, novas do seu feito tinham chegado antes dele. Ao vê-lo passar, assobiavam a Canção do Gavião, rivalizavam entre si para o receber durante a noite e o ouvirem contar o seu conto do dragão. Quando finalmente atingiu Serd, o mestre do navio a quem ele pediu passagem até Roke respondeu com uma vênia:
— Será um privilégio para mim, Senhor Feiticeiro, e uma honra para o meu navio!
E assim foi que Gued voltou costas às Noventa Ilhas. Mas, logo que o navio abandonou o Porto Interior de Serd e içou as velas, ergueu-se contra ele um violento vento de leste. Era estranho, pois o céu invernoso estava claro e o tempo nessa manhã parecera calmo e estável. Roke distava de Serd apenas trinta milhas e puseram-se a navegar. E quando o vento se levantou ainda mais, mesmo assim prosseguiram. O pequeno navio, como a maioria dos que fazem comércio no Mar Interior, ostentava a alta vela longitudinal que pode ser voltada para apanhar vento de popa, e o mestre era um marinheiro competente, orgulhoso da sua perícia. Assim, velejando ora para norte, ora para sul, foram progredindo para leste. Depois o vento trouxe nuvens e chuva, ao mesmo tempo que mudava de direção e soprava em rajadas tão violentas que havia um perigo considerável de o navio perder o rumo.
— Senhor Gavião — disse o mestre para o jovem que mantivera a seu lado, no lugar de honra, à popa, se bem que pouca dignidade se pudesse manter debaixo de um vento e de uma chuva que os encharcava a todos até os deixar com mísero aspecto nas suas capas ensopadas. — Senhor Gavião, podias talvez dizer uma palavra a este vento, não?
— Estamos já perto de Roke?
— A mais de meio caminho. Mas não conseguimos avançar nada nesta última hora, Senhor.
Gued falou ao vento. Soprou com menos força e, por algum tempo, progrediram razoavelmente. Depois, inesperadamente, vieram silvando do Sul fortes rajadas e, perante elas, de novo se viram desviados para ocidente. As nuvens desfaziam-se e referviam no céu e o mestre do navio rugiu raivosamente:
— Esta ventania de doidos sopra de todos os lados ao mesmo tempo! Só um vento mágico nos pode valer com este tempo, Senhor.
Gued encarou sombriamente o pedido, mas o navio e os seus homens estavam em perigo por causa dele, de modo que mandou erguer o vento mágico e dirigiu-o para a vela. O navio começou de imediato a sulcar as águas em direção a leste e o mestre começou a ficar novamente de bom humor. Mas pouco a pouco, e embora Gued continuasse a manter a encantamento, o vento mágico abrandou, tornando-se cada vez mais fraco, até que o navio pareceu ficar imóvel sobre as vagas por um minuto, com a vela pendente, no meio de todo aquele tumulto da chuva e da ventania. E então, com um estrondo de trovão, a retranca veio rodando e o navio mudou o rumo e saltou para norte como um gato assustado.