Gued deitou a mão a uma escora, pois o navio ficara quase deitado sobre o flanco, e bradou:
— Regressa a Serd, mestre!
Mas o mestre praguejou e gritou que não faria tal.
— Com um feiticeiro a bordo, eu sendo o melhor marinheiro no mister e este o mais obediente navio em que jamais naveguei… voltar atrás?
Nesse momento, o navio voltou a girar, como se um remoinho lhe tivesse aprisionado a quilha, obrigando também o mestre a agarrar-se ao mastro da popa para se manter a bordo, e Gued disse:
— Deixa-me em Serd e navega para onde te aprouver. Não é contra o teu navio que este vento sopra, é contra mim.
— Contra ti, um feiticeiro de Roke?
— Nunca ouviste falar do vento de Roke, mestre?
— Sim, aquele que mantém os poderes maléficos longe da Ilha dos Sages. Mas que tem isso a ver contigo, um domador de dragões?
— Isso é entre mim e a minha sombra — respondeu Gued laconicamente, como é hábito nos feiticeiros. E nada mais disse enquanto navegavam rapidamente, sob vento constante e céus que se aclaravam, por sobre o mar de volta a Serd.
Ao afastar-se dos embarcadouros de Serd, sentiu o coração oprimido. Os dias iam encurtando, com a aproximação do Inverno, e em breve fazia escuro. Ao crepúsculo, o mal-estar de Gued aumentava sempre e, agora, o virar de cada rua parecia-lhe conter uma ameaça. Além disso, tinha de se conter para não olhar constantemente por cima do ombro, tentando ver o que podia vir atrás de si. Dirigiu-se à Casa do Mar de Serd, onde viajantes e mercadores comiam juntos da boa alimentação fornecida pela administração, podendo ainda dormir na longa sala de teto travejado. Pois tal é a hospitalidade das prósperas ilhas do Mar Interior.
Guardou um pouco da carne do jantar e, junto à cova do lume, atraiu o otaque para fora da dobra do seu capuz, onde se açoitara durante o dia, e tentou convencê-lo a comer, fazendo-lhe festas e sussurrando:
— Hoeg, Hoeg, meu pequenino, meu caladinho…
Mas o animalzinho não quis comer e foi-se esconder no bolso. Por aí, pela sua própria embotada incerteza, pelo próprio aspecto da escuridão nos cantos da grande sala, percebeu que a sombra não estava longe dele.
Naquele lugar, ninguém o conhecia. Eram viajantes, vindos de outras ilhas, que não tinham ouvido a Canção do Gavião. Ninguém lhe dirigiu a palavra. Por fim, escolheu uma enxerga e deitou-se. Mas durante toda a noite ali ficou de olhos abertos, sob o travejamento da sala, no meio do sono de estranhos. Toda a noite forcejou por escolher o seu caminho, por planear onde deveria dirigir-se, o que deveria fazer. Mas cada escolha, cada plano, logo eram bloqueados por um mau presságio de desgraça. Atravessada em cada caminho que ele pudesse tomar estava a sombra. Só Roke permanecia livre dela. E para Roke não podia ir, impedido pelos enormes, emaranhados e antigos sortilégios que mantinham em segurança a perigosa ilha. E o fato de o vento de Roke se ter erguido contra ele era uma prova segura de que a coisa que o perseguia devia estar já bem próxima dele.
Essa coisa era informe e sem corpo, cega para o brilho do Sol, uma criatura de uma região sem luz, sem lugar, sem tempo. Tinha de o procurar tateando, através dos dias e dos mares do mundo que o Sol ilumina, e apenas em sonhos e nas trevas lhe era possível tomar forma visível. Não tinha ainda substância ou ser sobre o qual pudesse brilhar a luz do sol. E é assim que no Feito de Hode se canta: «O raiar do dia faz toda a terra e todo o mar, da sombra gera a forma, afugentando o sonho para o reino da treva.» Mas se alguma vez a sombra conseguisse alcançar Gued, poderia retirar dele todo o poder, e tomar o próprio peso e calor da vida do seu corpo e a vontade que o fazia mover.
Esse era o desastre que ele via perante si em cada estrada. E sabia que podia ser atraído para esse desastre. Porque a sombra, tornando-se mais forte de cada vez que dele se aproximava, podia agora mesmo ter já força suficiente para pôr a seu uso poderes maléficos ou homens maldosos — mostrando-lhe falsos portentos ou falando-lhe com a voz de um estranho. Pois, tanto quanto ele sabia, num desses homens que dormia neste ou naquele canto da sala de teco travejado da Casa do Mar nessa noite, podia acoitar-se a coisa de negrume, encontrando apoio numa alma tenebrosa e ali esperando, observando Gued, alimentando-se, naquele preciso momento, da sua fraqueza, da sua incerteza, do seu medo.
Deixara de ser suportável. Tinha de confiar no acaso e ir para onde o acaso levasse. A primeira fria sugestão da alvorada, levantou-se e, sob a luz das estrelas que ia empalidecendo, apressou-se a descer até aos embarcadouros de Serd, com a única resolução de tomar o primeiro navio prestes a partir que o quisesse levar. Uma galera carregava óleo de túrbio. Iria levantar ferro ao nascer do Sol, em direção ao Grande Porto de Havnor. Gued pediu passagem ao mestre. Na maioria dos navios, um bordão de feiticeiro é passaporte e pagamento suficientes. De boa vontade o tomaram a bordo e, antes de decorrida uma hora, o navio partia. A disposição de espírito de Gued melhorou com o primeiro erguer dos quarenta longos remos e o rufo do tambor que marcava o ritmo era para ele como um hino de coragem.
Contudo, não sabia o que faria em Havnor ou para onde fugiria a partir daí. A direção para norte era tão boa como qualquer outra. Ele próprio era um homem do Norte. Talvez encontrasse em Havnor um navio que o levasse a Gont, onde poderia voltar a ver Óguion. Ou encontrar algum que o levasse para bem longe, até às Estremas, tão longe que a sombra o perdesse e desistisse da caçada. Para lá de idéias tão vagas como estas, não tinha em mente qualquer plano e não via rumo algum que devesse seguir com certeza. Só sabia que tinha de fugir…
Aqueles quarenta remos levaram o navio por sobre cento e cinqüenta milhas do mar de Inverno antes do pôr do Sol do segundo dia a partir de Serd. Chegaram assim a um porto em Orrimi, na costa leste do grande território de Hosk, dado que estas galeras que fazem comércio no Mar Interior se mantêm junto às costas e fundeiam durante a noite ao abrigo sempre que podem. Como ainda houvesse luz do dia, Gued foi a terra e vagueou pelas ruas íngremes da vila, sem destino e imerso nos seus pensamentos.
Orrimi é uma velha vila, pesadamente construída em pedra e tijolo, defendida por muralhas contra os senhores sem lei do interior da Ilha de Hosk. Os armazéns das docas são como fortes e as casas dos mercadores têm torres e são fortificadas. Contudo, para Gued, ao caminhar sem destino ao longo das ruas, aquelas poderosas mansões mais lhe pareciam véus, atrás dos quais se estendesse uma escuridão vazia. E as pessoas que passavam junto dele, entregues aos seus afazeres, não lhe pareciam seres humanos reais, mas apenas sombras de homens, sem voz. Com o pôr do Sol, regressou aos embarcadouros e, mesmo aí, na forte luz avermelhada e sob o vento do final do dia, mar e terra lhe pareceram igualmente esbatidos e silenciosos.
— Para onde vais, Senhor Feiticeiro?
Foi assim que alguém o saudou subitamente, atrás dele. Voltando-se, viu um homem vestido de cinzento que trazia um bordão de uma madeira pesada, mas que não era um bordão de feiticeiro. O rosto do estranho estava oculto da luz vermelha pelo capuz, porém Gued sentiu os olhos invisíveis cruzarem-se com os seus. Recuando em sobressalto, ergueu o seu próprio bordão de teixo entre ambos.
Suavemente, o homem perguntou:
— O que temes?
— O que segue atrás de mim.
— Seja. Mas eu não sou a tua sombra.
Gued permaneceu silencioso. Sabia que, na verdade, aquele homem, fosse ele quem fosse, não era o que temia. Não era sombra, nem fantasma, nem criatura gebbeth. No meio do seco silêncio e da sombra que viera sobre o mundo, mantinha inclusive uma voz e alguma solidez. E então deitou o capuz para trás. Tinha uma cabeça estranha, calva e com costuras, um rosto vincado de rugas. Embora a idade não tivesse transparecido na sua voz, tinha o aspecto de um velho.