— Não te conheço — disse o homem de cinzento — e, no entanto, julgo que talvez não nos tenhamos encontrado por acaso. Ouvi em tempos a história de um jovem, um homem com cicatrizes no rosto, que pela treva veio a alcançar grande domínio, mesmo a realeza. Não sei se será essa a tua história. Mas dir-te-ei o seguinte: se precisas de uma espada com que combater sombras, vai até à Corte da Terrenon. Um bordão de teixo não chega para o que necessitas.
Enquanto escutava, a esperança e a desconfiança lutavam no espírito de Gued. Um homem versado em feitiçaria em breve aprende que, na verdade, muito poucos dos seus encontros são por acaso, seja isso para bem ou para mal.
— Em que ilha fica a Corte da Terrenon?
— Em Osskil.
Ao ouvir aquele nome, e por um artifício da memória, Gued viu por um momento um corvo negro sobre erva verde, um corvo que o olhava de lado com um olho que era como uma pedra polida e que falava. Mas as palavras estavam esquecidas.
— Há algo de tenebroso no nome dessa terra — disse Gued, sempre olhando o homem de cinzento, tentando ajuizar que tipo de homem seria. Tinha uns certos modos que deixavam suspeitar que fosse bruxo, talvez até feiticeiro. E, no entanto, apesar de falar atrevidamente com Gued, havia nele um estranho aspecto de pessoa vencida, quase o aspecto de um doente, ou de um prisioneiro, ou de um escravo.
— Tu és de Roke — foi a resposta dele. — Os feiticeiros de Roke dão um mau nome a escolas de feitiçaria que não sejam a sua.
— Que homem és tu?
— Um viajante. Um agente de comércio de Osskil. Estou aqui em negócios — disse o homem de cinzento. E como Gued nada mais lhe perguntasse, desejou calmamente boa noite ao jovem e foi-se, subindo a estreita rua com degraus, acima do cais.
Gued voltou-se, inseguro se devia atender àquele sinal ou não, e olhou para norte. A luz vermelha estava a desaparecer rapidamente das colinas e do mar encapelado pelo vento. Chegava o lusco-fusco cinzento e, nos seus calcanhares, a noite.
Levado por súbita decisão, Gued apressou os passos ao longo do cais até junto de um pescador que dobrava as redes para dentro do seu bote e perguntou-lhe:
— Sabes de algum barco neste porto que esteja de partida para norte, para Semel ou para as Enlades?
— Aquele navio comprido, ali adiante, é de Osskil. É possível que faça escala nas Enlades.
Sempre apressado, Gued dirigiu-se ao grande navio que o pescador lhe indicara, uma embarcação alongada de sessenta remos, esguia como uma serpente, com a curva e alta proa esculpida e embutida com discos de concha de loto, as coberturas dos orifícios para os remos pintadas de vermelho e com a runa Sifl pintada a preto em cada uma. O seu aspecto dava uma idéia de ameaça e rapidez, e estava preparado para partir, já com toda a tripulação a bordo. Gued procurou o mestre do navio e pediu passagem para Osskil.
— Podes pagar?
— Tenho alguma perícia com ventos.
— Também eu sou um fazedor de tempo. Não tens nada para dar? Dinheiro?
Em Baixo Torning, os Ilhéus tinham pago Gued o melhor que podiam com as moedas de marfim usadas pelos que mercadejavam no Arquipélago. Embora lhe quisessem dar mais, apenas aceitara dez moedas. Ofereceu então essas moedas ao osskiliano, mas este abanou a cabeça.
— Nós não usamos essas fichas de jogo. Se não tens nada com que pagar, não posso tomar-te a bordo.
— Precisas de braços? Já remei numa galera.
— Sim, temos falta de dois homens. Procura então o teu banco — disse o mestre do navio. E não lhe prestou mais atenção.
Assim, pousando o bordão e o saco dos livros debaixo do banco dos remadores, Gued tornou-se durante dez amargos dias um remador a bordo daquele navio do Norte. Largaram de Orrimi ao romper do Sol e, durante esse dia, Gued pensou que não iria ser capaz de dar conta do seu trabalho. Tinha o braço esquerdo um pouco enfraquecido por causa das velhas feridas no ombro e, por muito que tivesse remado nos canais de Baixo Torning, isso não o preparara para puxar, puxar, puxar sem descanso pelo longo remo da galera, ao ritmo do tambor. Cada turno aos remos era de duas ou três horas, após o que um segundo grupo de remadores vinha ocupar os bancos, mas o tempo de repouso só parecia ser suficientemente longo para todos os músculos de Gued ficarem rígidos e logo chegava o momento de voltar aos remos. E o segundo dia foi ainda pior. Mas, depois, o corpo habituou-se ao labor e tudo passou a correr melhor.
Naquele navio não havia camaradagem entre os tripulantes como ele encontrara a bordo do Sombra, quando da sua primeira viagem para Roke. As tripulações dos navios das Andrades e de Gont são parceiros no negócio, trabalhando em conjunto para um proveito comum, ao passo que os mercadores de Osskil usam escravos e servos ou contratam homens para remar, pagando-lhes com pequenas moedas de ouro. O ouro é coisa de grande importância em Osskil. Mas não é origem de boa camaradagem, nem aí nem entre os dragões, que também altamente o prezam. Dado que metade daquela tripulação era formada por servos, forçados a trabalhar, os oficiais do navio eram condutores de escravos, e dos mais duros. Nunca assentavam o chicote nas costas de um remador que trabalhasse a soldo ou para pagar a passagem, mas não pode haver grande amizade numa tripulação em que alguns são chicoteados e outros não. Os companheiros de Gued poucas palavras trocavam entre si e ainda menos com ele. Eram na maioria homens de Osskil, que não falavam a língua Hardic do Arquipélago mas um dialeto próprio e eram homens rígidos, de pele pálida, longos bigodes pretos e cabelo liso. Kelub, o vermelho, era o nome que, entre eles, davam a Gued. Embora soubessem que era um feiticeiro, não tinham por ele qualquer consideração, antes uma espécie de desprezo cauteloso. E o próprio Gued não estava na disposição de travar amizades. Mesmo no seu banco, preso ao poderoso ritmo das remadas, um remador entre sessenta num navio que corria sobre os mares cinzentos e despovoados, ainda assim se sentia exposto, indefeso. Quando chegavam a portos estrangeiros, ao cair da noite, e ele se enrolava no seu manto para dormir, por muito cansado que estivesse sonhava, acordava, voltava a sonhar. Sonhos maléficos de que não era capaz de se recordar quando acordava, mas que pareciam suspensos sobre o navio e os homens do navio, fazendo-o desconfiar de todos eles.
Todos os homens livres de Osskil traziam uma faca comprida à anca e certo dia, quando o seu turno de remadores compartilhava a refeição do meio-dia, um desses homens perguntou-lhe:
— És escravo ou perjuro, Kelub?
— Nem uma coisa nem outra.
— Então por que motivo não tens faca? Tens medo de lutar? — continuou o homem, Skiorh, trocista.
— Não.
— Ou é o teu cachorro que luta por ti?
— Otaque — disse um outro que escutava a troca de palavras. — Cão, não. Aquilo é um otaque — e acrescentou qualquer coisa na língua de Osskil que fez Skiorh franzir o olho e voltar as costas. E, precisamente quando se virou, Gued deu por uma mudança no seu rosto, as feições a ondularem e a tornarem-se indistintas como se, por um instante, algo o tivesse modificado, utilizado, para lançar, através dos seus olhos, um relance de esguelha a Gued. Porém, no instante seguinte, Gued viu-lhe todo o rosto e estava como de costume, pelo que Gued disse para si próprio que o que vira fora o seu próprio receio, o seu próprio temor refletido nos olhos do outro. Mas nessa noite voltou a sonhar e Skiorh caminhou no seu sonho. A partir daí, evitou aquele homem o mais que pôde e dir-se-ia que também Skiorh se mantinha longe dele, pelo que não houve mais palavras trocadas entre ambos.