As montanhas coroadas de neve de Havnor afundaram-se atrás deles no horizonte, para sul, tornadas indistintas pelas névoas de princípio de Inverno. Continuaram remando para lá da entrada do Mar de Éa onde, há tanto tempo, Elfarran fora afogado e ainda para além das Enlades. Aportaram por dois dias a Berila, a Cidade do Marfim, branca acima da sua baía na parte ocidental da Enlad dos muitos mitos. Em todos os portos a que chegavam, os homens eram mantidos a bordo do navio e não podiam pôr pé em terra firme. Depois, sob um Sol que nascia vermelho, entraram no Mar de Osskil, sob os ventos de nordeste que sopram sem obstáculo que os quebre, vindos da vastidão despida de ilhas da Estrema Norte. Através desse mar cruel levaram a sua carga a bom porto, chegando no segundo dia, a partir de Berila, aos cais de Neshum, a cidade comercial de Osskil-Leste.
O que se deparou a Gued foi uma costa baixa açoitada pelo vento e pela chuva, uma vila cinzenta agachada por trás dos longos quebra-mares que formavam o seu porto e, nas costas da vila, montes despidos de árvores sob um céu escurecido por nuvens carregadas de neve. Estavam muito longe da luz brilhante do Mar Interior.
Estivadores da Guilda do Mar de Neshum vieram a bordo fazer a descarga — ouro, prata, pedrarias, sedas finas e tapeçarias do Sul, as coisas preciosas que os senhores de Osskil entesouram — e os homens livres da tripulação foram dispensados. Gued interpelou um deles, para lhe perguntar o caminho. Até aí, a desconfiança que sentia por todos eles impedira-o de dizer para onde se dirigia, mas agora, a pé e sozinho numa terra estranha, forçoso era que pedisse indicações. O homem seguiu caminho impacientemente, dizendo que não sabia, mas Skiorh, que os ouvira, disse:
— A Corte da Terrenon? Nas charnecas de Keksemt. É esse o meu caminho.
Skiorh não era a companhia que Gued escolheria, mas, sem conhecer nem a língua nem o caminho, pouca escolha havia. E de qualquer forma, pensou, não tinha grande importância. Ele também não escolhera vir até ali. Fora conduzido e agora continuava a sê-lo. Puxou o capuz para cima da cabeça, pegou no bordão e no saco e seguiu o osskiliano através das ruas da cidade e depois para cima, em direção aos montes nevados. O pequeno otaque não quis viajar ao ombro, preferindo esconder-se no bolso da sua túnica de pele de carneiro, debaixo do manto, como era seu costume com tempo frio. Os montes deram lugar a charnecas ermas e ondulantes, estendendo-se até onde a vista podia alcançar. Caminhavam em silêncio e o silêncio do Inverno pesava sobre toda aquela terra.
— Quanto falta? — perguntou Gued depois de terem percorrido algumas milhas, não vendo quaisquer vestígios de aldeia ou herdade para onde quer que olhasse e pensando que não traziam alimentos consigo. Skiorh voltou momentaneamente a cabeça para ele, levantando o capuz, e respondeu:
— Pouco.
Era uma cara repulsiva, pálida, grosseira e cruel, mas Gued não temia homem algum, embora pudesse temer o lugar onde esse homem o poderia conduzir. Acenou que sim e prosseguiram. A estrada por onde seguiam não era mais que uma fina cicatriz através da vastidão de neve e arbustos sem folhas. De tempos a tempos, outros trilhos a atravessavam ou derivavam dela. Agora que o fumo das chaminés de Neshum se ocultara por trás dos montes na tarde cada vez mais escura, não havia sinal algum que indicasse por que caminho deveriam seguir, ou tinham seguido. Só o vento soprava constantemente de leste. E depois de terem caminhado por várias horas, Gued julgou avistar, lá longe nos montes, a noroeste, para onde tendia o rumo que seguiam, como que um pequeno rasgão contra o céu, semelhante a um dente, branco. Mas a luz daquele dia curto ia esmorecendo e, quando a estrada voltou a subir mais adiante, não conseguiu discernir melhor aquela coisa, torre, árvore ou o que quer que fosse.
— Vamos para ali? — perguntou, apontando.
Skiorh não deu resposta e seguiu caminho, embiocado na sua capa grosseira, o capuz osskiliano, bicudo e forrado a pele, na cabeça. Gued foi palmilhando atrás dele. Tinham andado muito e ele estava sonolento com as passadas uniformes da marcha e o longo cansaço dos duros dias e noites passados a bordo. Começou a parecer-lhe que vinha a andar desde sempre e continuaria para sempre a andar, junto daquele ser silencioso, através de uma terra silenciosa e cada vez mais escura. Cuidado e vontade tinham-se entorpecido nele. Caminhava como num sonho longo, longo, que não o levava a lado algum.
O otaque agitou-se no bolso, e um ligeiro e vago temor acordou e agitou-se também no seu espírito. Obrigou-se a falar:
— A escuridão está a chegar, e a neve também. Quanto falta ainda, Skiorh?
Após uma pausa, sem se voltar, o outro respondeu:
— Não muito.
Mas a sua voz não soou como voz de homem, antes como a de uma fera, rouca e sem lábios, que tentasse falar.
Gued estacou. Em toda a volta, na luz tardia e fosca, estendiam-se os montes vazios. Uma neve esparsa revoluteava um pouco, caindo.
— Skiorh! — disse. E o outro fez alto e voltou-se. Sob o capuz em bico não havia rosto algum.
E antes que Gued pudesse pronunciar um esconjuro ou invocar o seu poder, o gebbeth falou, dizendo na sua voz rouca:
— Gued!
E então o jovem viu-se impedido de conseguir qualquer transformação, ficando fechado no seu verdadeiro ser e obrigado a enfrentar assim indefeso o gebbeth. Nem podia invocar qualquer auxílio nesta terra estrangeira, onde nada nem ninguém era dele conhecido ou responderia ao seu chamado. Estava só, sem nada entre ele e o seu inimigo a não ser o bordão de teixo na mão direita.
A coisa que devorara a mente de Skiorh e lhe possuíra a carne fez o corpo dar um passo em direção a Gued e os braços acompanharam o movimento, erguendo-se tateantes para ele. Urna raiva toda feita de horror apoderou-se de Gued e ele ergueu e logo fez descer silvando o bordão sobre o capuz que ocultava o rosto de sombra. Capuz e capa desabaram quase até ao chão sob aquela pancada feroz, como se dentro deles nada mais houvesse que vento, mas logo, drapejando e ondulando, se voltaram a erguer. O corpo de um gebbeth foi despojado de verdadeira substância e é algo de semelhante a uma concha ou a um vapor sob a forma de um homem, uma carne irreal servindo de roupagem à sombra que é real. Assim, aos sacões, ondulando, como se soprada por algum vento, a sombra alargou os braços e dirigiu-se a Gued, tentando agarrá-lo como já o agarrara no Cabeço de Roke. E se o fizesse, lançaria fora a casca de Skiorh e entraria em Gued, devorando-o a partir de dentro, apoderando-se dele, como era seu único desejo. Gued atingiu de novo o gebbeth com o seu pesado e fumegante bordão, afastando-o a pancadas, mas aquilo voltou de novo e de novo o golpeou e depois deixou cair o bordão que se inflamara e ardera, queimando-lhe a mão. Recuou e logo, num repente, voltou costas e fugiu.
Corria e o gebbeth seguia-o, a um passo apenas de distância, incapaz de o ultrapassar mas também sem se deixar ficar para trás. Gued nunca se voltou para olhar. Corria, corria, através daquela vasta terra crepuscular, onde não havia sítio para se ocultar. Uma vez, o gebbeth chamou-o na sua voz rouca e sibilada, chamou-o pelo nome-verdadeiro uma vez mais, mas, embora se tivesse assim apoderado do seu poder de feiticeiro, não tinha domínio sobre a força do seu corpo e não conseguiu fazê-lo parar. Gued continuou a correr.
A noite espessou-se em redor de caçador e presa, a neve caía finalmente sobre o caminho que Gued já não conseguia ver. Sentia nos olhos o acelerado do coração, a respiração queimava-lhe a garganta e ele não conseguia agora correr verdadeiramente, seguia apenas em frente tropeçando e cambaleando. Mas nem mesmo assim o perseguidor parecia capaz de o apanhar, vindo sempre mesmo atrás dele. Começara a falar-lhe, segredando e murmurando, chamando-o, e Gued sentia que em toda a sua vida aquele segredar estivera nos seus ouvidos, logo abaixo do limiar da audição, mas agora conseguia ouvi-lo e tinha de ceder, de desistir, de parar. E, contudo prosseguiu ainda naquele esforço, lutando por subir uma ladeira longa e indistinta. Pensou que houvesse uma luz algures na sua frente, julgou ouvir uma voz adiante e acima dele chamando-o: «Vem! Vem!»