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Tentou responder mas faltou-lhe a voz. A pálida luz tornou-se mais nítida, brilhando através de uma entrada mesmo à sua frente. Não conseguia ver as paredes, mas viu a porta e, ao vê-la, estacou. Logo o gebbeth lhe tentou agarrar o manto, as mãos tateando desajeitadamente os flancos, tentando assenhorear-se dele por trás. Com as últimas forças que lhe restavam, Gued lançou-se através daquela porta que brilhava levemente. Tentou voltar-se para a fechar atrás de si, travando o gebbeth, mas as suas pernas já não conseguiam mantê-lo. Cambaleou, procurando um apoio. Luzes dançaram e relampejaram em frente dos seus olhos. Sentiu que caía e sentiu que algo o segurava ao cair. Mas a sua mente, totalmente exausta, deslizou para dentro da escuridão.

7. O VÔO DO FALCÃO

Gued acordou e, por muito tempo, teve apenas a percepção de que era agradável acordar, pois não esperara voltar a fazê-lo, e era muito agradável ver a luz do dia, a vasta e simples luz do dia a toda a sua volta. Sentiu-se como se estivesse a flutuar nessa luz ou fosse à deriva num barco sobre águas tranqüilas. Por fim, concluiu que estava numa cama, mas nada tinha a ver com qualquer outra em que alguma vez tivesse dormido. Estava feita sobre uma estrutura que se apoiava em quatro pernas altas e trabalhadas e os colchões eram grandes sacos de seda cheios de penas, o que explicava a sensação que tivera de flutuar, e por cima de tudo um dossel carmesim destinado a impedir as correntes de ar. Em dois lados, a cortina estava levantada e presa, permitindo que Gued visse um quarto com paredes e chão de pedra. Através de três janelas altas, avistou a charneca, castanha e nua, com um trecho de neve aqui e além, envolta na tênue luz do Inverno. O quarto devia situar-se bem acima do solo, pois avistava-se uma grande extensão do terreno em volta.

Quando Gued se sentou, uma coberta de cetim também recheada de penas deslizou para o lado e ele viu que envergava uma túnica de seda e passamanaria de prata, como um senhor. Numa cadeira ao lado da cama estavam preparados para ele botas de pelica e um manto debruado a pele de pellauí. Deixou-se ficar sentado por uns momentos, calmo e entorpecido, como alguém presa de um sortilégio, e depois levantou-se, estendendo a mão para pegar no bordão. Mas não tinha bordão.

A sua mão direita, embora tivesse sido tratada e ligada, estava queimada na palma e nos dedos. E nesse momento sentiu a dor que havia nela e o cansaço dorido de todo o corpo.

Uma vez mais, quedou-se sem fazer qualquer movimento. Depois sibilou, não muito alto, não muito esperançoso:

— Hoeg… Hoeg…

Porque também aquela criaturinha feroz e leal, a pequena alma silenciosa que já uma vez o arrancara ao domínio da morte, desaparecera. Estaria ainda com ele na noite passada, quando fugira? E teria sido na noite anterior ou muitas noites atrás? Não sabia. Tudo na sua mente era vago e obscuro, o gebbeth, o bordão em chamas, a fuga, o sussurro, a porta. De nada conseguia lembrar-se claramente. E, mesmo agora, nada era claro. Sussurrou uma vez mais o nome do seu animalzinho, mas sem esperança de obter resposta, e as lágrimas assomaram-lhe aos olhos.

Nalgum lado, longinquamente, soou uma campainha. E uma segunda produziu um tilintar muito doce, mesmo fora do quarto. Uma porta abriu-se atrás dele, do outro lado do quarto, e entrou uma mulher.

— Bem-vindo sejas, Gavião.

Era jovem e alta, vestida de branco e prata, com uma rede de prata a encimar-lhe a cabeleira que caía a direito como uma cascata de água negra.

Rapidamente, Gued inclinou a cabeça.

— Julgo que não te lembras de mim.

— Lembrar-me de ti, Senhora?

Nunca vira uma mulher bonita vestida de modo a fazer justiça à sua beleza senão uma única vez na sua vida. Aquela Senhora de O que viera com o seu Senhor ao Festival do Regresso-do-Sol em Roke. Vira-a como a chama de uma vela, brilhante e esguia, mas esta mulher era como a brancura da lua nova.

— Logo vi que não — prosseguiu ela, sorrindo. — Mas, por muito esquecido que sejas, és aqui acolhido como um velho amigo.

— Que lugar é este? — perguntou Gued, sentindo-se rígido ainda e lento de fala. Verificou que era difícil falar com ela, difícil desviar dela os olhos. As roupas principescas que envergava eram-lhe estranhas, as pedras sobre as quais se erguia não eram familiares e estrangeiro era o próprio ar que respirava. Não era ele próprio, não era o ser que fora.

— Esta fortaleza tem o nome de Corte da Terrenon. O meu Senhor, a quem chamam Benderesk, é soberano desta terra desde o limite das Charnecas de Keksemt até ao Norte, às Montanhas de Os, e guardião da pedra preciosa chamada Terrenon. Quanto a mim, aqui em Osskil chamam-me Serret, prata na língua deles. Quanto a ti, já sei, chamam-te por vezes Gavião e ascendeste a feiticeiro na Ilha dos Sages.

Gued olhou para baixo, para a sua mão queimada, e acabou por dizer:

— Não sei o que sou. Tive poder, em tempos. Perdi-o, penso.

— Não! Tu não o perdeste, ou então foi para o recuperares dez vezes mais forte. Aqui estás a salvo do que te perseguia, meu amigo. Há muralhas poderosas ao redor desta torre e nem todas são de pedra. Aqui poderás repousar e recuperar as tuas forças. E aqui poderás encontrar uma força diferente e um bordão que não se faça em cinzas na tua mão. Afinal, um mau caminho pode conduzir a bom fim. E agora vem comigo, deixa-me mostrar-te o resto do nosso domínio.

E falava com tal doçura que Gued mal lhe ouvia as palavras, tocado apenas pela promessa que havia na sua voz. Seguiu-a.

O quarto ficava realmente muito alto na torre que se erguia como um dente afiado acima do topo da colina. Descendo escadas de mármore em espiral, Gued seguiu Serret, através de ricas salas e salões, passando por janelas que abriam para norte, oeste, sul e leste, por sobre as baixas colinas castanhas que se sucediam, sem casas, sem árvores, sem mudança, claras sob o desbotado céu de Inverno. Só muito longe para norte se erguiam pequenos picos brancos a destacarem-se nitidamente contra o azul, enquanto para sul se adivinhava o brilho do mar.

Servos abriram portas e desviaram-se para o lado perante Gued e a dama, todos eles pálidos e frios osskilianos. Também a pele dela era clara, mas, ao contrário deles, falava bem a língua Hardic e mesmo, pareceu a Gued, com o sotaque de Gont. Mais tarde, nesse mesmo dia, ela levou-o perante o marido, Benderesk, Senhor da Terrenon. Com três vezes a sua idade, branco como um osso e como um osso magro, de olhar turvo, o Senhor Benderesk acolheu Gued com uma fria e severa cortesia, convidando-o a permanecer como hóspede durante o tempo que lhe aprouvesse. Depois pouco mais teve para dizer, nada perguntando a Gued das suas viagens ou do inimigo que o perseguira até ali. E também a Dama Serret nada lhe perguntara de tais coisas.

Se isto era estranho, era apenas parte da estranheza daquele sítio e da sua própria presença nele. A mente de Gued nunca pareceu aclarar-se. Não conseguia ver as coisas distintamente. Viera até esta torre-fortaleza por acaso e, no entanto, todo o acaso era desígnio. Ou viera por desígnio e, contudo, todo o desígnio apenas se devera ao acaso. Dirigira-se para norte. Um estranho em Orrimi dissera-lhe que procurasse ajuda ali. Um navio osskiliano estivera à espera dele. Skiorh guiara-o. Quanto de tudo isto seria obra da sombra que o perseguia? Ou não seria nada? Teriam sido ambos, ele e o seu perseguidor, atraídos ali por algum poder, ele seguindo esse chamariz e a sombra seguindo-o a ele, apoderando-se de Skiorh como sua arma ao surgir a ocasião? Devia ser isso, pois certamente a sombra estava, como dissera Serret, impedida de penetrar na Corte da Terrenon. Desde que acordara na torre, não voltara a sentir sinal ou ameaça da sua abominável presença. Mas então o que o trouxera ali? Porque aquele não era lugar onde se viesse por acaso. Mesmo na lentidão dos seus pensamentos, começava a ver isso. Nenhum outro estranho se acercava daquelas portas. A torre erguia-se, isolada e remota, de costas voltadas para o caminho de Neshum, que era a cidade mais próxima. Ninguém vinha até à fortaleza, ninguém dela saía. Das suas janelas só se avistava a desolação. E dessas janelas olhava Gued, permanecendo sozinho no seu alto quarto, dia após dia, lento de idéias, dorido de coração e frio. Fazia sempre frio na torre, apesar de todos os tapetes e tapeçarias e rico vestuário forrado a pele e vastas lareiras de mármore que ali havia. Era um frio que penetrava até aos ossos, até à medula, e não se deixava desalojar. E, no coração de Gued, também uma vergonha fria penetrou e não se deixava desalojar, à medida que ele ia constantemente pensando no modo como enfrentara o seu inimigo e fora derrotado e fugira. No seu espírito, reuniram-se todos os Mestres de Roke, com Guencher, o Arquimago, franzindo o cenho no meio deles, e juntou-se ainda Nemmerle, e Óguion, e até a bruxa que lhe ensinara o seu primeiro conjuro. Todos o olhavam e ele sabia que tinha desiludido a confiança que nele depositavam. Argumentava, dizendo: «Se não fosse eu fugir, a sombra ter-me-ia possuído. Tinha já toda a força de Skiorh, parte da minha, e eu não podia combatê-la. Sabia o meu nome. Tive de fugir. Um feiticeiro-gebbeth teria sido um terrível poder para o mal e para a ruína. Tive de fugir.» Mas nenhum dos que o escutavam no seu espírito lhe respondia. E ele observava a neve a cair, fina e incessante, sobre as terras desoladas por baixo da janela, sentindo o frio entorpecedor a crescer dentro dele, até lhe parecer que nenhuma sensação lhe restava, a não ser uma espécie de lassidão.