Gued deu um passo em frente e golpeou a mão do senhor, com a sua, forçando-a a baixar, ao mesmo tempo que pronunciava uma única e curta palavra. E embora não tivesse bordão, e estivesse em terreno alheio e maléfico, domínio de um poder tenebroso, mesmo assim a sua vontade prevaleceu. Benderesk imobilizou-se, os olhos enevoados fixos, cheios de ódio e cegos, sobre Serret.
— Vem — disse ela em voz que tremia —, vem, Gavião, depressa, antes que ele consiga invocar os Servos da Pedra…
Como um eco, um sussurro correu através da torre, por dentro das pedras de paredes e chão, um murmúrio tremente e seco, como se a própria terra pudesse falar.
Agarrando na mão de Gued, Serret fugiu com ele ao longo de corredores e salas, pelas altas escadas em espiral abaixo. Saíram por fim para o pátio, onde um resto de luz prateada do dia permanecia ainda sobre a neve pisada e suja. Três dos servos do castelo lhes barraram o caminho, com expressão sombria e interrogativa, como se suspeitassem de alguma conspiração entre aqueles dois contra o seu amo.
— Está a escurecer, Senhora — disse um deles. E logo outro: — Não podes sair agora.
— Saiam do meu caminho, vermes! — bradou Serret, e disse algumas palavras na sibilante língua de Osskil. Os homens afastaram-se dela, dobraram-se até ao chão, aos estremeções, e um deles gritou alto.
— Temos de ir pela porta grande, não há mais nenhuma saída. Consegues vê-la? Consegues encontrá-la, Gavião?
Puxou-lhe a mão, mas Gued hesitava ainda.
— Que esconjuro lhes lançaste? — quis saber.
— Fiz-lhes correr chumbo derretido pelo tutano dos ossos e disso vão morrer. Depressa, digo-te eu, ou ele lançará sobre nós os Servos da Pedra. E eu não consigo encontrar a porta… Há um grande sortilégio sobre ela. Depressa!
Gued não entendia o que ela queria dizer porque, para ele, a porta encantada era tão obviamente visível como as pedras da passagem em abóbada que a ela conduziam a partir do pátio e através da qual a via. Conduziu Serret através da passagem, por sobre a neve virgem de pegadas da entrada para o pátio e logo, tendo pronunciado uma palavra de Abrir, atravessaram ambos a porta da muralha de sortilégios.
Ao passarem através daquela entrada para fora do crepúsculo prateado da Corte da Terrenon, Serret modificou-se. Não que fosse menos bela à luz triste da charneca, mas havia na sua beleza um ar feroz de feiticeira. E Gued reconheceu-a por fim. Era a filha do Senhor de Re Albi, filha de uma mágica de Osskil, a que troçara dele nos verdes prados acima da casa de Óguion, havia tanto tempo, e o levara a ler aquele esconjuro que libertara a sombra. Mas pouco demorou os pensamentos nisso, porque olhava agora em seu redor com todos os sentidos em alerta, procurando esse inimigo, a sombra, que estaria à sua espera nalgum lado, fora das paredes mágicas. Poderia ser ainda um gebbeth, revestido com a morte de Skiorh, ou poderia ocultar-se na escuridão crescente, esperando para o agarrar e fundir o seu vulto informe com o corpo vivo de Gued. Sentia-lhe a proximidade e, no entanto, não o via. Mas, ao perscrutar o espaço em volta, deu com uma coisa pequena e escura meia mergulhada na neve, a poucos passos da porta. Baixou-se e depois, muito suavemente, levantou-a em ambas as mãos. Era o otaque, o pêlo fino e curto todo pegajoso de sangue, o pequeno corpo leve, hirto e frio nas suas mãos.
— Transforma-te! Transforma-te depressa, eles vêm aí! — gritou agudamente Serret, agarrando-lhe o braço e apontando para a torre, erguendo-se atrás deles como um grande dente branco no escuro crepuscular. Das seteiras próximas da base saíam escuras criaturas, abrindo longas asas, batendo-as lentamente e erguendo-se era espiral por sobre as muralhas e em direção a Gued e Serret, sós e desprotegidos na encosta do monte. O sussurro estrepitoso que tinham ouvido dentro da fortaleza aumentara, soando agora como um tremor e um gemer dentro da terra, sob os seus pés.
A ira ergueu-se como uma vaga no coração de Gued, uma cólera ardente contra todas as coisas cruéis e mortíferas que o tinham iludido, armando-lhe laços, perseguindo-o sem descanso.
— Transforma-te! — bradou-lhe uma vez mais Serret e, com um esconjuro dito rapidamente e em voz ofegante, ela própria se transformou numa gaivota cinzenta e levantou vôo. Mas Gued inclinou-se para o chão e arrancou uma folha de erva bravia que saía, seca e frágil, da neve onde o otaque jazera morto. Ergueu essa folha e, enquanto lhe falava em voz alta na Fala Verdadeira, ela cresceu, espessou-se e, quando Gued acabou, segurava na mão um grande bordão, um bordão de feiticeiro. Nenhum fogo de maldição o percorreu com a sua cor vermelha quando as criaturas negras e adejantes da Corte da Terrenon picaram sobre ele e lhes golpeou as asas. Flamejou apenas com o branco fogo mágico que não queima mas afugenta a escuridão.
As criaturas voltaram ao ataque. Bestas feras, aleijões vindos de eras anteriores aos pássaros, aos dragões, aos homens, há muito esquecidas pela luz do dia, mas de novo invocadas pelo poder antigo, maligno, o poder que nada esquecia, da Pedra. Sem lhe dar tréguas, caíam sobre Gued e ele sentia o silvo das suas garras como foices ao redor dele, o nauseante cheiro a morte que delas se desprendia. Ferozmente, aparava os golpes e devolvia-os, mantendo-os à distância com o bordão flamejante, feito da sua cólera e de um fio de erva brava. E, subitamente, todas as criaturas se ergueram no ar como corvos afugentados de cima de algum cadáver decomposto e rondaram para longe, batendo as asas, silenciosas, na direção que Serret tomara na sua forma de gaivota. As suas vastas asas pareciam lentas, mas voavam rapidamente, porque cada impulso as fazia avançar poderosamente através do ar. Não havia gaivota que pudesse escapar por muito tempo àquela pesada velocidade.
Tão rápido como já uma vez o fizera em Roke, Gued tomou a forma de um grande falcão. Não da pequena ave rapace por cujo nome o tratavam, Gavião, mas do Falcão-Peregrino que voa como uma flecha, como o pensamento. E com as suas asas listradas, cortantes e potentes, perseguindo os perseguidores, voou célere. Os ares iam escurecendo e, por entre as nuvens, o brilho das estrelas ia-se tornando mais nítido. Lá à frente, avistou o bando negro e irregular das criaturas que se lançavam sobre um único ponto pairando no ar. Para além daquele borrão negro, estendia-se o mar, palidamente iluminado pela derradeira e acinzentada claridade do dia. Veloz e em linha reta, o falcão-Gued lançou-se contra as criaturas da Pedra que se dispersaram quando penetrou no meio delas, como se dispersam as gotas da água ferida por uma pedra. Mas tinham alcançado a sua presa. Via-se sangue no bico de uma, penas brancas estavam presas às garras de outra e não havia qualquer gaivota a pairar para além delas, sobre a extensão pálida do mar.
Já as criaturas se voltavam de novo contra Gued, rápida e pesadamente, os bicos de aço a abrirem-se, a estenderem-se para ele. E Gued, rondando uma só vez por sobre elas, lançou o grito do falcão, o grito de raiva e desafio, antes de atravessar célere por sobre as praias baixas de Osskil e, ultrapassando os recifes, voar para o mar largo.
As criaturas da Pedra voaram por algum tempo em círculos, crocitando, para depois, uma a uma, regressarem no seu vôo poderoso ao interior da ilha, por sobre a charneca. Os Velhos Poderes não atravessam o mar, pois cada um está ligado a uma ilha, a um determinado lugar, gruta ou pedra ou nascente. E assim voltaram as negras emanações à fortaleza, onde o Senhor da Terrenon, Benderesk, terá talvez chorado ao seu regresso, ou talvez rido. Mas Gued prosseguiu, com suas asas de falcão, sua fúria de falcão, tal flecha que não mais caísse, tal pensamento que não mais esquecesse, sobrevoando o Mar de Osskil e, para leste, integrando-se no vento do Inverno e na noite.