Quando o seu barco, Vê-longe, ficou pronto e bem fornecido de água e peixe seco, permaneceu ainda mais um dia na ilha para ensinar ao seu jovem chantre o Feito de Morred e o Lai Havnoriano. É muito raro que algum navio do Arquipélago faça escala nas Mãos, pelo que canções compostas cem anos antes eram novidades para aqueles aldeões e ansiavam por ouvir cantos acerca de heróis. Estivesse Gued livre do que se lhe impusera e alegremente ali teria ficado durante uma semana ou um mês a cantar-lhes o que sabia, para que os grandes cantos fossem conhecidos numa nova ilha. Mas não era livre de o fazer e, na manhã seguinte, fez-se às ondas, dirigindo-se diretamente para sul, por sobre os vastos mares da Estrema. Porque para sul se dirigira a sombra. Para o saber não necessitava de lançar nenhum sortilégio de achar. Sabia-o apenas, tão seguramente como se houvesse um fino cordão a desenrolar-se entre ambos e a mantê-los ligados, por mais milhas e mares e terras que entre eles houvesse. Por isso seguiu seguro, sem pressa e sem esperança, no caminho que lhe era forçoso seguir, e o vento de Inverno impelia-o para sul.
Um dia e uma noite navegou pelo mar solitário e, no segundo dia, chegou a uma pequena ilha que lhe disseram chamar-se Vemish. As gentes no pequeno porto olhavam-no de soslaio e em breve o seu bruxo acorreu apressadamente. Olhou atentamente para Gued e logo, com uma vênia, disse numa voz a um tempo pomposa e aduladora:
— Senhor Feiticeiro! Perdoa a minha temeridade e faz a honra de aceitar de nós tudo o que necessites para a tua viagem: alimentos, bebida, pano de velas, corda. A minha filha está neste preciso momento a levar para o teu barco um par de galinhas acabadas de assar. Porém, acho prudente que prossigas o teu caminho e partas daqui tão depressa quanto aches conveniente. As pessoas estão algo consternadas e temerosas. É que não há muito, no dia antes de ontem foi avistada uma pessoa que atravessava a nossa humilde ilha, a pé, de norte para sul, e não se vira barco algum que a trouxesse a bordo, nem se viu barco algum que com ela partisse, e não se via que ela projetasse sombra. E aqueles que se cruzaram com essa pessoa dizem-me que tinha algumas semelhanças contigo.
Perante isto, Gued fez também uma vênia e, voltando costas, regressou às docas de Vemish e logo se fez ao mar, sem sequer olhar para trás. Não ganharia nada em assustar os ilhéus nem em fazer do seu mágico um inimigo. Preferia voltar a dormir em pleno mar e refletir sobre as notícias que o mágico lhe dera e o tinham deixado não pouco perplexo.
O dia chegou ao fim e a noite passou, com uma chuva fria a sussurrar sobre as ondas, e passou também o cinzento amanhecer. O suave vento norte continuava a impelir o Vê-longe. De tarde, a chuva e a névoa foram levadas pelo vento e o Sol pôde brilhar de quando em quando. E, já perto do fim do dia, Gued viu, mesmo a atravessar-se no seu rumo, os baixos montes azulados de uma grande ilha, clara sob a luz de Inverno que ia esmorecendo. O fumo das lareiras, azul, pegava-se aos telhados de lousa das pequenas vilas que se estendiam entre os montes, um cenário bem agradável depois da vastidão sempre igual do mar.
Gued seguiu uma frota de pesca que regressava ao porto e, subindo as ruas da vila no entardecer dourado do Inverno, foi dar com uma estalagem chamada O Harrekki, onde a luz do lume, a cerveja leve e as costeletas de carneiro grelhadas lhe aqueceram o corpo e a alma. Sentados à mesa da estalagem havia alguns outros viajantes, comerciantes da Estrema Leste, mas a maioria dos homens presentes eram habitantes da vila que ali tinham vindo em busca de cerveja, novidades e conversa. Não eram gente rude e tímida como os pescadores das Mãos, mas verdadeiros vilões, vivos e ponderados. Certamente perceberam que Gued era um feiticeiro, mas nada se disse a esse respeito, a não ser a referência feita pelo estalajadeira em conversa (e se ele era conversador) ao fato de que aquela vila, Ismay, tinha a sorte de compartilhar com outras vilas da ilha um inestimável tesouro, um grande feiticeiro treinado na Escola de Roke, que recebera o seu bordão das próprias mãos do Arquimago e que, embora ausente da vila naquele momento, vivia na sua casa ancestral, ali mesmo em Ismay, que, por conseguinte, não tinha necessidade de qualquer outro praticante das Grandes Artes.
— Como se costuma dizer, dois bordões na mesma vila ainda acabam à bordoada, pois não é assim, Senhor? — acrescentou ainda o estalajadeira, sorridente e bonacheirão.
Gued ficou assim a saber que como feiticeiro andante, dos que pretendem usar a magia como meio de vida, não era ali desejado. Tivera, pois, a rejeição sem rodeios em Vemish e agora aquela, mais branda, em Ismay, e perguntava-se onde estariam os modos gentis da Estrema Leste, de que lhe tinham falado. A ilha onde estava era Iffish, e nela nascera o seu amigo Vetch. Mas não lhe parecia um lugar tão hospitaleiro como Vetch o descrevera.
E no entanto bem via como os rostos eram, na verdade, amigáveis. O que se passava era que aquela gente pressentia o que ele sabia ser verdade. Que ele estava posto à parte deles, desligado deles à força, que levava sobre si uma maldição e tinha de seguir uma coisa de treva. Ele era como um vento frio perpassando através da sala iluminada pelo lume, uma ave negra trazida de terras estranhas por uma tempestade. Quanto mais depressa voltasse a partir, levando consigo o seu destino maléfico, tanto melhor para aquela gente.
— Vou numa demanda. — disse ao estalajadeira. — Ficarei apenas uma ou duas noites. — Havia tristeza no seu tom de voz.
O estalajadeira, lançando um olhar ao grande bordão de teixo encostado a um canto, nada disse desta feita, mas encheu a tigela de Gued com cerveja castanha até a espuma escorrer para fora.
Gued sabia que devia passar apenas aquela noite em Ismay. Não era bem vindo ali, nem em parte alguma. Tinha de seguir para onde estava obrigado a ir. Mas estava farto do mar gélido e vazio, sem uma voz que lhe falasse. Disse a si próprio que passaria aquele dia em Ismay e que de manhã partiria. Dormiu, pois, até tarde. Ao acordar, caía uma neve fina. Vagueou ociosamente pelas ruelas e congostas da vila, só para ver as pessoas entregues aos seus afazeres. Viu crianças embrulhadas em capas de peles, brincando aos castelos de neve e fazendo bonecos de neve. Ouviu bisbilhoteiras tagarelando pelas portas abertas, de um lado para o outro da rua. Observou o bronzeiro no seu trabalho e um rapazinho de cara avermelhada a suar no esforço de bombear ar para as mangas do fole. Através de janelas, por onde se coava uma claridade esbatida entre dourado e vermelho, enquanto o curto dia ia escurecendo, viu mulheres a fiar, voltando-se de vez em quando para falarem ou sorrirem ao marido, a um filho, no doce calor dentro de casa. Gued viu todas essas coisas de fora e separado delas, sozinho, e o coração pesava-lhe no peito, embora não quisesse admitir para si próprio que estava triste. Ao cair da noite, permaneceu ainda nas ruas, relutante em regressar à estalagem. Ouviu um homem e uma rapariga a falarem jovialmente um com o outro, ao passarem por ele rua abaixo em direção à praça principal, e de súbito voltou-se, porque reconhecera a voz do homem.