O rapaz não sofrera qualquer ferimento de arma, mas não conseguia falar, nem comer, nem dormir. Também parecia não ouvir o que lhe diziam, nem ver aqueles que o vinham visitar. E não havia naquela parte do mundo ninguém com magia suficiente para curar o que o afligia. A tia afirmava:
— Ele usou mais poder que o que tinha —, mas não possuía arte para o ajudar.
Enquanto ele assim jazia, taciturno e mudo, a história do moço que tecera o nevoeiro e afugentara guerreiros karguianos, assustando-os e confundindo-os com uma série de sombras, ia sendo contada por todo o Vale do Norte e na Floresta Oriental, e mesmo no cume da montanha e, para lá desta, até no Grande Porto de Gont. E assim veio a suceder que, no quinto dia após a chacina de Foz-do-Ar, um estranho veio até à aldeia de Dez Amieiros, um homem nem jovem nem velho, que chegou envolvido num manto e de cabeça descoberta, carregando com aparente facilidade um grande bordão de carvalho, tão alto como ele próprio. Não veio subindo o curso do Ar, como a maioria das pessoas, mas descendo-o, pois saíra da floresta na parte mais alta da encosta. As mães de família da aldeia logo viram que era um feiticeiro e, quando ele lhes disse ser um curandeiro, levaram-no de imediato à casa do bronzeiro. Mandando todos embora à exceção do pai e da tia do rapaz, o estranho inclinou-se sobre o pobre leito onde Duny jazia, de olhos fitos no escuro, e mais não fez que pousar-lhe a mão na testa e tocar-lhe uma só vez nos lábios.
Duny soergueu-se lentamente, olhando ao seu redor. Dentro em pouco falou, logo as forças e a fome lhe começaram a voltar. Deram-lhe alguma coisa de comer e de beber, após o que tornou a recostar-se, sempre a observar o estranho com olhar profundo e interrogativo.
O bronzeiro disse ao estranho:
— Tu não és um homem vulgar.
— Também este rapaz não será um homem vulgar — respondeu o outro. — A história do seu feito com o nevoeiro chegou até Re Albi, onde vivo. Vim até aqui para lhe dar o seu nome se, como se diz, ainda não fez passagem para a idade adulta.
A bruxa sussurrou para o bronzeiro:
— Irmão, este é de certeza o mago de Re Albi, Óguion, o Silencioso, aquele que dominou o tremor de terra…
— Senhor — disse o bronzeiro, não se deixando intimidar por qualquer grande nome —, o meu filho faz treze anos no mês que vem, mas tínhamos pensado em adiar a passagem para a Festa do Regresso-do-Sol neste Inverno.
— Há que lhe dar o nome o mais breve possível — atalhou o mago —, porque ele precisa do nome. Tenho agora outros assuntos a tratar, mas voltarei aqui no dia que escolheres. Se estiveres de acordo, levá-lo-ei depois comigo. E se ele der boas provas, tomá-lo-ei como aprendiz ou providenciarei para que seja ensinado à medida dos dons que tiver. Porque manter na obscuridade a mente daquele que já nasceu mago é coisa muito perigosa.
E as palavras de Óguion, embora suavemente ditas, traziam tal certeza que até o teimoso bronzeiro não pôde deixar de concordar com elas.
No dia em que o rapaz fez treze anos, um dia esplendoroso do início de Outono, quando as folhas brilhantes estão ainda nos ramos, Óguion regressou à aldeia, vindo das suas perambulações pela montanha de Gont, e os ritos da Passagem foram celebrados. A bruxa tomou do rapaz o seu nome de Duny, o nome que a mãe lhe dera quando bebê. Sem nome, nu, entrou na fria nascente do Ar, onde ele surge por entre rochas, sob as altas ravinas. Quando penetrou na água, nuvens atravessaram a face do Sol e grandes sombras deslizaram e confundiram-se sobre a água do pego ao seu redor. O rapaz atravessou para a outra margem, tremendo de frio mas caminhando lento e ereto como era seu dever, por dentro daquela água gelada e viva. No momento em que alcançava a margem, Óguion, que o esperava, estendeu a mão e sussurrou-lhe o seu nome verdadeiro: Gued.
E assim lhe foi dado o seu nome por alguém altamente judicioso nas utilizações do poder.
Estava ainda a festa longe de acabar e todos os aldeões se divertiam, tendo muito que comer e beber, ouvindo um trovador, da zona inferior do Vale, cantar o Feito dos Senhores de Dragões, quando o mago disse a Gued, na sua voz suave:
— Vem, rapaz. Diz adeus à tua gente e deixa-os festejar sozinhos.
Gued pegou no que tinha de levar, que era a boa faca de bronze que o pai forjara para ele, um casaco de couro que a mulher do curtidor lhe cortara à medida e uma vara de amieiro a que a tia deitara um encanto para ele. Era tudo o que tinha no mundo, além da camisa e das bragas. Disse-lhes adeus, a todas as pessoas que conhecia em todo o mundo, e olhou uma só vez em redor, abarcando a aldeia que ali se aninhava, dispersamente, sob as ravinas, acima da nascente do rio. Depois partiu com o seu novo amo, através do chão íngreme das florestas da ilha-montanha, sob as sombras e as folhas brilhantes do Outono.
2. A SOMBRA
Gued pensara que, como aprendiz de um grande mago, teria de imediato acesso ao mistério e domínio do poder. Iria compreender a linguagem dos animais e o discurso das folhas da floresta, pensava, e mandar nos ventos com a sua palavra e aprender a tomar qualquer forma que quisesse. Talvez o seu mestre e ele corressem juntos como veados, ou voassem até Re Albi, por sobre a montanha, na asas das águias.
Mas não foi de modo algum assim. Foram vagueando, primeiro descendo o vale e depois, gradualmente, inflectindo para sul e ocidente, ao redor da montanha, recebendo alojamento em pequenas aldeias ou passando a noite ao relento, nos campos incultos, como pobres bruxos trabalhando à jorna, ou latoeiros, ou mendigos. Não penetraram em qualquer misterioso domínio. Nada acontecia. O bordão de carvalho do mago, que Gued começara por olhar com um temor ávido, não passava afinal de um apoio resistente para a caminhada. Passaram-se três dias e passaram-se quatro e Óguion ainda não formulara uma única encantamento aos ouvidos de Gued, nem lhe ensinara um só nome, ou runa, ou esconjuro.
Embora extremamente calado, era tão brando e calmo que Gued em breve deixou de o temer e, passados mais um ou dois dias, sentiu-se suficientemente arrojado para perguntar:
— Senhor, o meu aprendizado quando começa?
— Já começou — retorquiu Óguion.
Fez-se um silêncio, como se Gued estivesse a conter palavras que precisava de pronunciar. E por fim disse-as:
— Mas se até agora ainda não aprendi nada!
— Porque ainda não descobriste o que te estou a ensinar — replicou o mago, prosseguindo, nas passadas regulares das suas longas pernas, pela estrada que constituía a passagem elevada entre Ovark e Uíss. Era um homem de pele escura, como quase todos os gontianos, de um castanho brônzeo, de cabelo grisalho, magro e rijo como um galgo, incansável. Raramente falava, pouco comia, dormia ainda menos. A sua vista e ouvido eram muito apurados e no seu rosto surgia com freqüência uma expressão de quem escuta atentamente.
Gued não teve resposta para lhe dar. Nem sempre é fácil responder a um feiticeiro.
— Tu queres lançar feitiços — prosseguiu finalmente Óguion, sempre caminhando. — Já tiraste demasiada água desse poço. Espera. Chegar a homem adulto requer paciência. Chegar a mestre requer nove vezes mais paciência. Que erva é aquela, à beira do caminho?
— Centáurea-azul.
— E aquela?
— Não sei.
— Quadrifólio é o nome que lhe dão.
Óguion estacara, com a ponteira de cobre do seu bastão junto à pequena erva, de modo que Gued olhou a planta de perto, arrancou-lhe uma vagem seca e, por fim, já que Óguion se remetera ao silêncio, perguntou: