— E que utilidade tem, Mestre?
— Que eu saiba, nenhuma.
Enquanto seguiam caminho, Gued guardou a vagem durante um bocado, mas acabou por deitá-la fora.
— Quando conheceres o quadrifólio em todas as suas estações, a sua raiz, folha e flores, pela vista, pelo aroma e pela semente, então poderás aprender o seu nome-verdadeiro, conhecendo o seu ser. E esse é bem mais que a sua utilidade. Ao fim e ao cabo, que utilidade tens tu? Ou eu? A Montanha de Gont é útil, ou o Alto-Mar?
Óguion continuou a caminhar durante cerca de um quilômetro e lá acabou por voltar a falar.
— Para ouvir, temos de estar em silêncio.
O rapaz franziu a testa. Não lhe agradava que o fizessem sentir-se idiota. Mas dominou o seu ressentimento, a sua impaciência, e tentou ser obediente na esperança de que Óguion consentisse enfim em lhe ensinar alguma coisa. Porque ele estava sedento de aprender, de alcançar poder. Porém, começou a afigurar-se-lhe que teria aprendido mais se acompanhasse algum herbanário ou bruxo de aldeia e, enquanto davam a volta à montanha pelo oeste e em direção às solitárias florestas para lá de Uíss, ia perguntando cada vez mais freqüentemente a si próprio qual seria a grandeza e a magia daquele grande Mago Óguion. Porque nem mesmo quando choveu Óguion se decidiu a dizer o esconjuro, bem conhecido por todos os fazedores de tempo, para desviar a tempestade. Numa terra onde os feiticeiros são em chusma, como Gont ou as Enlades, podemos ver uma nuvem de chuva a vaguear lentamente de um lado para o outro e de aldeia em aldeia, à medida que cada esconjuro a faz desviar para o seguinte, até que por fim é impelida para o largo, sobre o mar, onde pode chover em paz. Mas Óguion deixou que a chuva caísse onde muito bem lhe parecia. Procurou um abeto bem desenvolvido e deitou-se debaixo. Quanto a Gued, agachou-se entre os arbustos que escorriam água, molhado e macambúzio, pensando o que haveria de bom em ter poder se se era demasiado assisado para o usar e desejando ter ido antes para aprendiz do velho fazedor de tempo do vale, com quem ao menos teria dormido seco. Mas não exprimiu em voz alta nenhum dos seus pensamentos. Aliás, não pronunciou nem uma palavra. O seu mestre sorriu e adormeceu ao som da chuva.
Mais próximo já do Regresso-do-Sol, quando os primeiros grandes nevões começavam a cair no cumes de Gont, chegaram a Re Albi, a terra de Óguion. E uma povoação na orla dos cumes rochosos de Overfell e o seu nome significa Ninho de Falcão. Dali avista-se, muito abaixo, o abrigo profundo e as torres do Porto de Gont, os barcos que entram e saem da baía entre os Braços da Falésia e, mais longe ainda, para ocidente, além do mar, era possível distinguir os montes azulados de Oranéa, a mais oriental das Ilhas Interiores.
A casa do mago, embora grande e totalmente construída em madeira, com lareira e chaminé em vez do buraco no chão para o fogo, era idêntica às cabanas da aldeia de Dez Amieiros, com uma única divisão e um curral de cabras encostado a um dos lados. Na parede oeste da divisão havia uma espécie de alcova onde dormia Gued. Sobre a sua enxerga abria-se uma janela que dava para o mar, mas, na maior parte do tempo, as portadas tinham de ficar fechadas por causa dos fortes ventos que sopravam durante todo o Inverno de ocidente e de norte. Foi na penumbra quente dessa casa que Gued passou o Inverno, ouvindo as arremetidas da chuva e do vento ou o silêncio dos nevões, aprendendo a escrever e a ler as Seis Centenas de Runas de Hardic. E bem contente ficou de adquirir esse conhecimento porque, sem ele, não é o mero aprender de cor de encantamentos e esconjuros que pode dar acesso à verdadeira mestria. A língua Hardic do arquipélago, se bem que não haja nela mais poder mágico que em qualquer outra língua humana, tem as suas raízes na Antiga Fala, essa linguagem em que as coisas são chamadas pelos seus nomes-verdadeiros. E a via para a compreensão dessa língua inicia-se com as Runas, que foram escritas quando as ilhas do mundo pela primeira vez se ergueram do mar.
Mas ainda não houvera nem sinais de maravilhas ou encantamentos. Todo o Inverno nada mais ocorreu para além do voltar das pesadas páginas do Livro das Runas, e da chuva e da neve caindo. Óguion regressava do seu vaguear pelas florestas gélidas, ou de olhar pelas cabras, batia com os pés no chão para sacudir a neve das botas e sentava-se, em silêncio, junto ao fogo. E o longo, o atento silêncio do mago enchia toda a casa, enchia a mente de Gued, até que por vezes parecia ao rapaz que se esquecera de qual era o som das palavras. E quando Óguion finalmente falava, era como se, precisamente nesse instante e pela primeira vez, tivesse inventado a fala. E, no entanto, as palavras que pronunciava não diziam respeito a assuntos de vulto, tendo apenas a ver com coisas mais simples, com o pão e a água, com o tempo e o sono.
Quando, rápida e luminosa, a Primavera chegou, Óguion passou a enviar freqüentemente Gued aos prados acima de Re Albi, a colher ervas. Disse-lhe que demorasse o tempo que lhe apetecesse a tratar da tarefa, dando-lhe assim liberdade para passar todo o dia a caminhar sem destino junto aos rios cheios com a água das chuvas e através dos bosques e pelos campos verdes e úmidos, ao sol. Era sempre com profundo prazer que Gued saía e se deixava ficar por fora até ser noite, mas nunca se esquecia totalmente das ervas. Mantinha-se atento a elas, ao mesmo tempo que trepava, vagueava, passava rios a vau e explorava, trazendo sempre algumas para casa. Certa vez, chegou a um prado entre dois rios onde a flor a que chamam halos-brancos crescia em profusão e, sendo essas flores raras e tidas em alto valor pelos curandeiros, voltou ali no dia seguinte. Alguém lá chegara antes dele, uma rapariga que conhecia de vista, filha do velho Senhor de Re Albi. Por ele não lhe teria falado, mas a rapariga acercou-se e cumprimentou-o com modos agradáveis.
— Conheço-te — disse. — És o Gavião, o discípulo do nosso mago. Quem dera que me falasses de feitiçaria.
O rapaz olhou para as flores que lhe roçavam a saia branca e, a princípio, acanhado e sorumbático, mal lhe respondeu. Porém, ela continuou a falar de um modo aberto, descuidado e veemente que, pouco a pouco, o pôs à vontade. A rapariga era alta, praticamente da idade dele e muito pálida, quase branca. Dizia-se na aldeia que a mãe era de Osskil ou qualquer outra região longínqua. O longo cabelo caía a direito, como uma cascata de água negra. Gued achou-a muito feia, mas sentia o desejo de lhe agradar, de lhe conquistar a admiração, desejo que ia crescendo enquanto falavam. A rapariga levou-o a contar toda a história dos truques com o nevoeiro que tinham derrotado os guerreiros karguianos, ouvindo-o como se o achasse maravilhoso e admirável, mas não teve uma palavra de louvor. E em breve encaminhava a conversa noutro sentido.
— Consegues fazer os animais e as aves vir junto de ti? — perguntou.
— Consigo — respondeu Gued.
Sabia que havia um ninho de falcão nas escarpas acima do prado e invocou a ave, chamando-a pelo seu nome-verdadeiro. O falcão veio mas não lhe pousou no pulso, sem dúvida afugentado pela presença da rapariga. Gritou, bateu o ar com as suas largas asas estriadas e subiu no vento.
— Como chamas a esse tipo de encantamento, essa que fez vir o falcão?
— Um esconjuro de Invocação.
— E também és capaz de invocar os espíritos dos mortos? Pensou que ela estivesse a troçar dele ao fazer aquela pergunta porque o falcão não obedecera totalmente ao seu chamado.
— Seria, se escolhesse fazê-lo — disse em tom calmo.
— Mas não é muito difícil, muito perigoso, invocar um espírito?
— Difícil, sim. Mas perigoso? — Gued encolheu os ombros. Desta vez estava quase certo de que havia admiração nos olhos dela.
— Sabes fazer um sortilégio de amor?
— Isso não é mestria.
— Dizes bem — comentou ela —, qualquer bruxa de aldeia o pode fazer. E podes fazer encantamentos de mudança? Consegues mudar a tua própria forma, como dizem que os feiticeiros fazem?