Uma vez mais, Gued não estava muito seguro de que ela não tivesse feito a pergunta por troça, de modo que, de novo, replicou:
— Conseguia, se escolhesse fazê-lo.
Ela pôs-se então a pedir-lhe que se transformasse em qualquer coisa que lhe apetecesse: um falcão, um touro, um fogo, uma árvore. Desencorajou-a usando frases curtas e reservadas, como o seu mestre costumava fazer, mas não foi capaz de se recusar abertamente quando ela começou a adulá-lo. Além disso, nem sabia se ele próprio acreditava ou não na sua bazófia. Deixou-a com o pretexto de que o seu mestre, o mago, o esperava em casa e, no dia seguinte, não voltou ao prado. Mas no outro dia foi lá, dizendo para consigo que tinha de colher mais daquelas flores, enquanto estavam abertas. A rapariga estava ali e, juntos, passearam de pés descalços pela terra encharcada do prado, colhendo as pesadas flores brancas. Brilhava o sol da Primavera e ela falava-lhe tão alegremente como qualquer pastorita de cabras da sua própria aldeia. Depois, voltou a fazer-lhe perguntas sobre feitiçaria, ouvindo tudo o que ele dizia com olhos abertos de espanto, o que o levou uma vez mais a gabar-se. E então ela pediu-lhe que fizesse um encantamento de Mudança e, quando ele se negou, olhou para ele, desviando do rosto o longo cabelo negro, e disse:
— Tens medo de o fazer?
— Não, não tenho medo.
Ela sorriu algo desdenhosamente e continuou:
— Talvez ainda sejas muito novo.
Isso é que ele não ia permitir. Não falou muito, mas intimamente decidiu que lhe mostraria o seu valor. Disse à rapariga que voltasse ao prado no dia seguinte, se quisesse, e regressou a casa enquanto o mestre andava ainda por fora. Foi direito à prateleira e tirou os dois Livros do Saber, que Óguion nunca abrira ainda na sua presença.
Procurou um encantamento de Automudança, mas, lento como ainda era a ler as runas e pouco entendendo do que lia, não conseguiu encontrar o que pretendia. Aqueles eram uns livros muito antigos. Óguion recebera-os do seu próprio mestre, Heleth, o Longividente, e Heleth do seu mestre, o Mago de Perregal, e sempre assim até aos tempos do mito. A escrita era pequena e estranha, com palavras traçadas por cima ou entre as linhas em muitas letras diferentes, e as mãos que as haviam escrito eram já pó. No entanto, aqui e além, Gued foi conseguindo compreender um pouco do que tentava ler e, sempre com as perguntas e a troça da rapariga a ocuparem-lhe o espírito, parou numa página onde constava um encantamento para invocar os espíritos dos mortos.
Ao lê-la, decifrando, um a um, runas e símbolos, foi tomado de horror. Os seus olhos fixaram-se involuntariamente nas folhas e não conseguiu levantá-los enquanto não acabou de ler o esconjuro inteiro.
Depois, ao levantar a cabeça, viu que fazia escuro na casa. Tinha estado a ler sem a mínima luz, na escuridão. Agora, ao baixar os olhos para o livro, já não conseguia distinguir as runas. Mas, mesmo assim, o horror voltou a crescer dentro dele, parecendo que o deixava preso à cadeira. Sentia-se frio. Olhando por cima do ombro, viu qualquer coisa que se agachava junto à porta fechada, um coágulo informe de sombra, mais escuro que a escuridão. Parecia querer alcançá-lo e segredar e chamá-lo num sussurro, mas não conseguia entender as palavras.
A porta foi aberta de par em par. Um homem entrou e uma luz branca flamejava ao seu redor. Era uma figura luminosa que, de súbito, fez ouvir a sua voz, alta e feroz. E a escuridão e o segredar cessaram e foram dissipados.
O horror abandonou então Gued, mas permanecia mortalmente temeroso, porque era Óguion, o Mago, que ali estava na entrada, com aquela luminosidade ao seu redor, o bordão de carvalho ardendo na sua mão com branco esplendor.
Sem uma palavra, o mago passou por Gued, foi acender a lâmpada e arrumou os livros na prateleira. Depois voltou-se para o rapaz e disse:
— Nunca farás aquele esconjuro, a não ser em perigo do teu poder ou da tua vida. Foi por ele que abriste os livros?
— Não, Mestre — murmurou o rapaz. E, envergonhadamente, contou a Óguion o que quisera procurar e porquê.
— Não te lembraste do que te disse? Que a mãe dessa rapariga, a mulher do Senhor, é uma tecedora de encantamentos?
Na realidade, Óguion dissera-lho certa vez, mas Gued pouca atenção lhe prestara, embora soubesse agora que Óguion nunca lhe dizia nada sem ter uma boa razão para o fazer.
— A própria filha já é meia feiticeira. Pode bem ter sido a mãe quem mandou a rapariga falar contigo. Pode ter sido ela a abrir o livro na página que leste. Os poderes que ela serve não são aqueles que eu sirvo. Não sei o que ela quer, mas sei que não quer o meu bem. Gued, ouve-me agora com atenção. Nunca pensaste que o perigo rodeia forçosamente o poder, tal como a sombra rodeia a luz? A feitiçaria não é um jogo a que nos entreguemos pelo prazer ou pelos louvores. Pensa nisto. Cada palavra e cada ato da nossa Arte é dita e é feito ou para o bem ou para o mal. Antes de falares ou agires, tens de saber qual o preço a pagar!
Impelido pela vergonha que sentia, Gued bradou:
— Mas como hei de eu saber essas coisas se não me ensinas nada? Desde que estou contigo, nunca fiz nada, nunca vi nada…
— Mas agora já viste alguma coisa — interrompeu o mago. — Junto à porta, no escuro, quando eu entrei.
Gued ficou calado.
Óguion ajoelhou-se junto à lareira, preparou a lenha e acendeu-a, porque a casa estava fria. Depois, ainda ajoelhado, disse no seu brando tom de voz:
— Gued, meu jovem falcão, nada te prende a mim ou ao meu serviço. Não foste tu que vieste ao meu encontro, mas eu ao teu. És muito jovem ainda para fazer essa escolha, mas não posso fazê-la por ti. Se assim quiseres, posso mandar-te para a Ilha de Roke, onde se ensinam todas as artes maiores. Qualquer uma a que te queiras dedicar, aprendê-la-ás, pois o teu poder é grande. Maior até, espero eu, que o teu orgulho. Gostaria de manter-te aqui comigo, porque o que eu tenho é o que te falta, mas não o farei contra tua vontade. Agora, escolhe entre Re Albi e Roke.
Gued ficou mudo, o coração em tumulto. Acabara por ter amor àquele homem, Óguion, que com um toque da sua mão o curara e em quem não havia ira. Amava-o e não o soubera até àquele momento. Olhou o bordão encostado ao canto da chaminé, recordando o esplendor que libertara e como consumira o mal que viera das trevas. Ansiava por permanecer com Óguion e com ele vaguear através das florestas, por muito tempo e até muito longe, aprendendo a manter o silêncio. Mas havia nele outras ânsias que não podiam ser apaziguadas, o desejo de glória, o desejo de agir. Óguion parecia-lhe uma longa estrada até ao domínio da mestria, um lento caminho secundário por onde seguir, quando ele podia navegar levado pelos ventos marinhos até ao Mar Interior, à ilha dos Sages, onde o próprio ar vibrava de encantamentos e o Arquimago caminhava entre maravilhas.
— Mestre — disse —, irei para Roke.
E assim, poucos dias mais tarde, numa soalheira manhã de Primavera, Óguion percorreu a seu lado a íngreme estrada desde Overfell e ao longo de vinte quilômetros até ao Grande Porto de Gont. Ali, às portas da povoação e entre dragões esculpidos, os guardas da Cidade de Gont, ao verem o mago, ajoelharam apresentando-lhe as espadas nuas e dando-lhe as boas-vindas. Conheciam-no e faziam-lhe honras não só por ordem do Príncipe, mas também por sua própria vontade, pois dez anos antes Óguion salvara a cidade do tremor de terra que teria sacudido e lançado por terra as torres dos ricos e fechado o canal entre os Braços da Falésia com uma terrível avalanche. O mago falara à Montanha de Gont, acalmando-a, e sossegara os (Tementes precipícios de Overfell como quem aquieta um animal assustado. Gued ouvira algo sobre isso e agora, maravilhando-se ao ver aqueles guardas armados ajoelhando perante o seu brando mestre, recordou essa história. Relanceou os olhos, quase com medo, para aquele homem que fizera parar um terremoto. Mas o rosto de Óguion estava tão calmo como sempre.