— Nem sempre podes encontrar o Guardião onde ele está, mas por vezes encontrá-lo onde ele não está. — E seguiu caminho, a apregoar os seus mexilhões.
Na parede do grande edifício, perto de uma esquina, havia uma pequena porta de madeira, com muito mau aspecto. Gued dirigiu-se a ela e bateu com força. E disse ao homem idoso que lhe abriu a porta:
— Trago uma carta do Mago Óguion para o Guardião da Escola que há nesta ilha. Quero encontrar o Guardião, mas já não estou para ouvir mais adivinhas nem troças!
— A Escola é aqui — disse o ancião brandamente. — Eu sou o porteiro. Entra, se puderes.
Gued deu um passo em frente. Pareceu-lhe que tinha atravessado a entrada mas afinal permanecia no passeio, onde já antes estava.
Uma vez mais deu um passo em frente e uma vez mais permaneceu do lado de fora da porta. O porteiro, lá de dentro, observava-o benignamente.
Mais do que intrigado, Gued estava furioso, pois aquilo parecia-lhe mais uma maneira de troçar dele. Com a voz e a mão fez o esconjuro de Abrir que já há muito a tia lhe ensinara. Era o mais precioso entre todos os esconjuros que possuía e Gued teceu-o bem naquela ocasião. Porém, não passava de um feitiço de bruxa e o poder que mantinha a porta intransponível nem ao de leve foi abalado.
Quando o esconjuro falhou, Gued permaneceu por longo tempo ali parado, no passeio. Por fim, olhou o ancião que, lá dentro, continuava à espera.
— Não consigo entrar — confessou, embora de má vontade —, a não ser que me ajudes.
A isto o porteiro respondeu:
— Diz o teu nome.
E uma vez mais Gued permaneceu parado e silencioso por algum tempo, porque um homem nunca diz em voz alta o seu próprio nome, a não ser que esteja em causa algo mais que a segurança da sua vida.
Finalmente, disse em voz alta:
— Sou Gued. — E, dando um passo em frente, atravessou a entrada. Porém, embora a luz lhe desse por trás, pareceu-lhe que uma sombra o seguira, colada aos seus calcanhares.
Ao voltar-se, verificou também que a moldura da porta não era de simples madeira, como pensara, mas sim de marfim, sem qualquer junta ou emenda. Soube mais tarde que fora cortada de um dente do Grande Dragão. E a porta que o ancião fechou atrás dele era de corno polido, através do qual a luz do dia transluzia levemente, e na sua face interior via-se, talhada, a Árvore de Mil Folhas.
— Bem-vindo a esta casa, rapaz — disse o porteiro. E, sem mais palavras, conduziu-o através de salas e corredores até um pátio aberto, bem no interior das paredes do edifício. O pátio era parcialmente pavimentado com lajes, mas não tinha telhado e, num pedaço de relvado, uma fonte jorrava água sob árvores jovens e à luz do Sol. Ali se quedou Gued esperando sozinho durante algum tempo. Permaneceu muito quieto, com o coração a bater fortemente, pois parecia-lhe sentir presenças e forças em ação, invisíveis mas reais, ao seu redor, e compreendeu que aquele lugar não era construído apenas com pedra, mas com magia mais forte que a pedra. Encontrava-se na sala mais interior da Casa dos Sages, e ela abria-se para os céus. E subitamente deu pela presença de um homem trajando de branco que o observava através da água que caía da fonte.
Quando os seus olhares se cruzaram, um pássaro cantou alto nos ramos da árvore. Nesse momento, Gued compreendeu o canto da ave e a linguagem da água tombando no tanque da fonte e a forma das nuvens e o início e final do vento que agitava as folhas. Pareceu-lhe que ele próprio era uma palavra dita pela luz do Sol.
E então o momento passou e ele e o mundo ficaram como eram antes, ou quase como antes. Então Gued adiantou-se a ajoelhar perante o Arquimago, estendendo-lhe a carta escrita por Óguion.
O Arquimago Nemmerle, Guardião de Roke, era um homem velho, mais velho, dizia-se, que qualquer homem então em vida. A sua voz trilou como a voz do pássaro quando ele falou, acolhendo Gued bondosamente. O seu cabelo e barba eram brancos, tal como o seu manto, e ao olhá-lo dir-se-ia que tudo o que pudesse ter havido nele de escuro ou de pesado fora retirado pelo lento desgaste dos anos, deixando-o branco e usado como madeira que andasse à deriva na água durante todo um século.
— Os meus olhos estão velhos, rapaz — disse ele na sua voz trêmula —, não consigo ler o que me escreve o teu mestre. Lê-me tu a carta.
Gued decifrou pois e leu em voz alta a escrita, que era em runas da língua Hardic, e não dizia senão isto: Senhor Nemmerle! Envio-vos alguém que, assim o vento sopre de feição, será o maior dos feiticeiros de Gont. A mensagem estava assinada, não com o nome-verdadeiro de Óguion, que Gued nunca aprendera, mas com a runa do mago, a Boca Cerrada.
— Aquele que mantém o tremor de terra à trela foi quem te enviou e por isso és duplamente bem-vindo. O jovem Óguion era-me caro quando, de Gont, veio até nós. E agora fala-me dos mares e dos portentos da tua viagem, rapaz.
— Uma bela viagem, Senhor, não fora pela tempestade de ontem.
— Que navio te trouxe?
— O Sombra, com mercadorias das Andrades.
— Que vontade te enviou aqui?
— A minha.
O Arquimago olhou para Gued, depois desviou a vista e começou a falar numa língua que o rapaz não compreendia, resmungando como é costume em alguém muito, muito velho e cujo siso se vai dispersando por entre os anos e as ilhas. E, no entanto, por entre o resmungo, havia palavras do que o pássaro cantara e do que a água dissera ao cair. Não estava a lançar qualquer encantamento, mas havia um poder na sua voz que perturbou a mente de Gued a tal ponto que o rapaz ficou desnorteado e, por um instante, pareceu-lhe ver-se a si próprio num local estranho, vasto e deserto, sozinho entre sombras. Mas, mesmo assim e durante todo esse tempo, continuava no pátio iluminado pelo sol, ouvindo cair a água da fonte.
Um grande pássaro negro, um corvo de Osskil, veio caminhando pelo terraço empedrado e pela erva. Veio até junto da fímbria do manto do Arquimago e ali ficou, todo negro, com o seu bico semelhante a uma adaga, os seus olhos como seixos polidos, mirando Gued de lado. Por três vezes bicou o bordão branco a que Nemmerle se apoiava e o velho feiticeiro, cessando o seu resmungar, sorriu.
— Vai, rapaz. Corre e brinca — disse finalmente, como se falasse com uma criancinha.
Uma vez mais, Gued dobrou o joelho perante ele. Quando se voltou a erguer, o Arquimago desaparecera. Só o corvo continuava a olhá-lo, estendendo o bico como se quisesse bicar o bordão desaparecido.
Depois falou, no que Gued supôs ser a língua de Osskil.
— Terrenon assbaque! — crocitou. — Terrenon assbaque orrek! — E, tal como viera, assim se foi, no seu andar empertigado. Gued rodou sobre si próprio para abandonar o pátio, perguntando-se para onde ir. Sob o arco da entrada foi abordado por um jovem alto que o acolheu muito cortesmente, com uma inclinação de cabeça.
— Chamam-me Jaspe, filho de Enwit, do domínio de Eolg na Ilha de Havnor. Estou hoje ao teu serviço, para te mostrar a Casa Grande e responder o melhor que puder às tuas perguntas. Como devo chamar-te, Senhor?
E aí afigurou-se a Gued, aldeão montanhês que nunca estivera entre os filhos de nobres e de mercadores ricos, que aquele indivíduo estaria a troçar dele com os seus «serviços» e «senhorias», mais as mesuras e salamaleques. Assim, respondeu secamente:
— Gavião é como me chamam.
O outro aguardou um momento, como se esperasse resposta mais cortês e, não vendo sinais dela, endireitou-se e desviou-se um pouco. Devia ter dois ou três anos mais que Gued, era muito alto, movia-se e comportava-se com rígida elegância, com trejeitos (na opinião de Gued) de bailarino. Envergava um capote cinzento, com o capuz deitado para trás. O primeiro sítio onde levou Gued foi à sala do vestiário, para ali escolher, como aluno da escola, um capote idêntico que lhe ficasse à medida, bem como quaisquer outros artigos de vestuário de que precisasse. Gued envergou o capote cinzento-escuro que escolhera e Jaspe disse: