Ossos, pensou. Os ossos da alma. Os ossos de Balon, e os de Urri. A verdade encontra-se nos nossos ossos, pois a carne decompõe-se e o osso resiste. E no monte de Nagga, os ossos do Palácio do Rei Cinzento…
E descarnado, pálido e tremendo, Aeron Cabelo Molhado lutou por regressar a terra, mais sábio do que fora quando entrara no mar. Pois encontrara a resposta nos seus ossos, e o caminho que tinha em frente lhe era claro. A noite estava tão fria que o corpo pareceu fumegar quando regressou em silêncio ao abrigo, mas havia uma fogueira ardendo em seu coração, e por uma vez o sono chegou facilmente, sem ser quebrado pelo grito de dobradiças de ferro.
Quando acordou, o dia estava soalheiro e ventoso. Aeron quebrou o jejum com um caldo de mariscos e algas marinhas cozido numa fogueira de madeira trazida pelo mar. Tinha acabado de terminar quando Merlyn desceu da sua casa-torre com meia dúzia de guardas, à sua procura.
— O rei está morto — disse-lhe o Cabelo Molhado.
— Sim. Recebi uma ave. E agora outra. — Merlyn era um homem calvo, redondo e carnudo que chamava a si próprio “lorde” ao jeito das terras verdes, e se vestia de peles e veludos. — Um corvo me convoca a Pyke, e outro às Dez Torres. Vocês, as lulas gigantes, possuem muitos tentáculos, despedaçam um homem. Que diz, sacerdote? Para onde devo enviar os meus dracares?
Aeron franziu as sobrancelhas.
— Dez Torres, diz? Que lula gigante você chama aí? Dez Torres era a sede do Senhor de Harlaw.
— A Princesa Asha. Virou as velas para casa. O Leitor envia corvos, convocando todos os seus amigos a Harlaw. Diz que Balon tencionava que fosse ela a ocupar a Cadeira da Pedra do Mar.
— Será o Deus Afogado que decidirá quem deve ocupar a Cadeira da Pedra do Mar — disse o sacerdote. — Ajoelhai, para que possa lhe abençoar.
O Lorde Merlyn caiu sobre os joelhos, e Aeron tirou a rolha ao odre e despejou-lhe um gole de água do mar na careca.
— Senhor Deus que te afogaste por nós, permite que Meldred, teu criado, renasça do mar. Abençoe-o com o sal, abençoe-o com a pedra, abençoe-o com o aço.
A água escorria pelas gordas bochechas de Merlyn e ensopava-lhe a barba e a capa de pele de raposa. — O que está morto não pode morrer — terminou Aeron. — Mas volta a se erguer, mais duro e mais forte.
Mas quando Merlyn se ergueu, disse-lhe.
— Fique e escute, para que possas espalhar a palavra de deus.
A um metro da borda de água as ondas se arrebentavam em volta de um pedregulho redondo de granito. Foi aí que Aeron Cabelo Molhado subiu, para que todo o seu cardume pudesse vê-lo e ouvir as palavras que tinha a dizer.
— Nascemos do mar, e ao mar regressaremos, começou como começara cem vezes antes. O Deus da Tempestade, na sua ira, arrancou Balon ao seu castelo e o derrubou, e ele agora banqueteia-se sob as ondas.
Ergueu as mãos.
— O rei de ferro está morto! Mas um rei voltará a surgir! Pois o que está morto não pode morrer, mas volta a erguer-se, mais duro e mais forte!
— Um rei se erguerá! — Gritaram os afogados.
— Se erguerá. Tem de se erguer. Mas quem?
O Cabelo Molhado escutou por um momento, mas apenas as ondas lhe responderam.
Quem será o nosso rei?
Os afogados puseram-se a bater com as maças umas nas outras.
— Cabelo Molhado! — G ritaram. — Cabelo Molhado Rei! Aeron Rei! Dê-nos o Cabelo Molhado!
Aeron abanou a cabeça.
— Se um pai tem dois filhos e dá a um deles um machado e ao outro uma rede, qual deles pretende que seja o guerreiro?
— O machado é para o guerreiro — gritou Rus em resposta. — A rede para um pescador dos mares.
— Sim — disse Aeron. — O deus levou-me até às profundezas sob as águas e afogou a coisa imprestável que eu era. Quando voltou a atirar-me para a terra, deu-me olhos para ver, orelhas para ouvir, e uma voz para espalhar a sua palavra, para que eu pudesse ser o seu profeta e ensinar a sua verdade àqueles que a esqueceram. Não fui feito para me sentar na Cadeira da Pedra do Mar… tal como Euron Olho de Corvo não o foi. Pois eu escutei o deus, que diz: Nenhum homem sem deus pode sentar-se na minha Cadeira da Pedra do Mar!
O Merlyn cruzou os braços ao peito.
— Então é Asha? Ou Victarion? Diga-nos, sacerdote!
— O Deus Afogado os dirá, mas não aqui. — Aeron apontou para a gorda face branca de Merlyn. — Não olhe para mim, nem para as leis do homem, mas sim para o mar. Içai as velas e estendei os remos, senhor, e vá até Velha Wyk. Você, e todos os capitães e reis. Não vá para Pyke, baixar a cabeça perante o infiel, nem para Harlaw, ligar-se a mulheres intriguentas.
Aponte a proa a Velha Wyk, onde se erguia o Palácio do Rei Cinzento. Em nome do Deus Afogado os convoco. Convoco a todos! Deixe os seus salões e cabanas, os seus castelos e as suas fortalezas, e regressem ao monte de Nagga para uma assembleia de homens livres!
Merlyn olhou de boca aberta.
— Uma assembleia de homens livres? Não há uma verdadeira assembleia há…
—… demasiado tempo! Gritou Aeron numa angústia. Mas na alvorada dos dias, os homens de ferro escolhiam os seus próprios reis, promovendo os mais valorosos dentre eles. É tempo de regressarmos ao Costume Antigo, pois só isso nos devolverá a grandeza. Foi uma assembleia de homens livres que escolheu Urras Pé de Ferro para Rei Supremo, e lhe pôs uma coroa de madeira trazida pelo mar na cabeça. Sylas Nariz Chato, Harrag Hoare, a Velha Lula Gigante, foi a assembleia que os ergueu a todos.
E desta assembleia emergirá um homem capaz de terminar o trabalho que o Rei Balon iniciou de nos devolver a liberdade. Não vão para Pyke, nem para as Dez Torres de Harlaw, mas para a Velha Wyk, repito. Demandai o monte de Nagga e os ossos do Palácio do Rei Cinzento, pois nesse lugar sagrado, quando a lua se afogar e renascer, elegeremos um rei respeitável, um rei devoto.
Voltou a erguer bem alto as mãos ossudas.
— Escutem! Escutem as ondas! Escutem o deus! Ele está a nos falar e diz: Não teremos rei a menos que seja escolhido pela assembleia de homens livres!
Ergueu-se um rugido em resposta e os afogados bateram as suas maças umas nas outras.
— Uma assembleia de homens livres! — G ritaram. — Uma assembleia, uma assembleia. Não há rei sem ser pela assembleia!
O clamor que fizeram foi tão forte que certamente Olho de Corvo ouviu os gritos em Pyke, bem como o maligno Deus da Tempestade no seu salão de nuvens.
E Aeron Cabelo Molhado soube que agiu bem.
O CAPITÃO DOS GUARDAS
As laranjas de sangue já estão mais que maduras. —Observou o príncipe numa voz cansada quando o capitão A empurrou sua cadeira para a varanda.
Depois disso não voltou a falar durante horas.
Era verdade sobre as laranjas. Algumas tinham caído e estourado no mármore rosa pálido. O penetrante cheiro doce que exalavam enchia as narinas de Hotah a cada vez que inspirava. Sem dúvida, o príncipe podia cheirá-las também enquanto estava sentado sob as árvores na cadeira de rodas que o Meistre Caleotte tinha feito para ele, com as suas almofadas de penas de ganso e ruidosas rodas de ébano e ferro.
Durante um longo tempo os únicos sons que se ouviram foram os das crianças chapinhando nas lagoas e fontes, e uma vez mais um suave plop quando outra laranja caiu na varanda e estourou-se. Então o capitão ouviu o fraco tamborilar de botas no mármore vindo do outro lado do palácio.