— Às ordens de Vossa Graça. — Blount entregou a lanterna a Sor Osmund. Cersei não se sentiu insatisfeita por o ver pelas costas. O pai nunca lhe devia ter devolvido o branco. O homem provara ser um covarde.
Quando abandonaram a Fortaleza de Maegor, o céu tomara um profundo tom de azul-cobalto, embora as estrelas ainda brilhassem. Todas menos uma, pensou Cersei. A estrela brilhante do oeste caiu, e as noites serão agora mais escuras. Fez uma pausa sobre a ponte levadiça que transpunha o fosso seco, fitando os espigões, no fundo deste. Eles não se atreveriam a mentir-me acerca de uma coisa destas.
— Quem foi que o encontrou?
— Um dos seus guardas — disse Sor Osmund. — Lum. Sentiu o chamamento da natureza, e encontrou sua senhoria na latrina.
Não, isso não pode ser. Não é assim que um leão morre. A rainha sentia-se estranhamente calma. Lembrou-se da primeira vez que perdera um dente, quando não era mais que uma rapariguinha. Não doera, mas o buraco com que ficara na boca era tão estranho que não conseguia parar de o tocar com a língua. Agora há um buraco no mundo onde estava o pai, e os buracos querem algo que os encha.
Se Tywin Lannister estava realmente morto, ninguém se encontrava a salvo… principalmente o seu filho, no trono. Quando o leão cai, as feras menores avançam: os chacais, os abutres e os cães bravios. Iriam tentar pô-la de lado, como sempre tinham feito. Iria ter de se mover depressa, como quando Robert morrera. Aquilo podia ser obra de Stannis Baratheon, por intermédio de algum homem a soldo. Podia perfeitamente ser o prelúdio de outro ataque contra a cidade. Esperava que o fosse. Que ele venha. Vou esmagá-lo, tal como o pai fez, e desta vez morrerá.
Stannis não a assustava mais do que Mace Tyrell. Ninguém a assustava. Era uma filha do Rochedo, um leão. Não haverá mais conversas acerca de me obrigarem a voltar a casar. O Rochedo Casterly era agora seu, com todo o poder da Casa Lannister.
Nunca mais ninguém a menosprezaria. Mesmo quando Tommen deixasse de ter necessidade de um regente, a Senhora de Rochedo Casterly continuaria a ser uma força a ter em conta.
O sol nascente pintara os topos das torres de um vermelho-vivo, mas a noite ainda se acumulava sob as muralhas. O castelo exterior estava tão silencioso que poderia imagina-lo com toda a gente morta. E devia estar.
Não é próprio que o Lorde Tywin morra só. Um tal homem merece uma comitiva para cuidar das suas necessidades no inferno.
Quatro lanceiros com mantos vermelhos e elmos coroados por leões estavam colocados à porta da Torre da Mão.
— Ninguém deverá entrar ou sair sem a minha autorização — disse lhes.
O comando veio-lhe fácil. O meu pai também tinha aço na voz.
Dentro da torre, a fumaça dos archotes irritou-lhe os olhos, mas Cersei não chorou, como o pai não teria chorado. Sou o único verdadeiro filho que ele teve. Os calcanhares raspavam na pedra enquanto subia, e ainda conseguia ouvir a mariposa a esvoaçar furiosamente dentro da lanterna de Sor Osmund. Morre, pensou a rainha, irritada, voa para a chama e acaba com isso.
No topo da escada encontravam-se mais dois guardas de mantos vermelhos. O Lester Vermelho murmurou uma condolência quando ela passou. A respiração da rainha estava rápida e pouco profunda, e ela sentia o coração a tamborilar no peito. Os degraus, disse a si própria, esta maldita torre tem degraus a mais. Estava meio decidida a deita-la abaixo.
O salão estava cheio de palermas que falavam em murmúrios, como se o Lorde Tywin estivesse a dormir e tivessem medo de o acordar. Tanto os guardas como os criados se encolhiam perante ela, com as bocas a adejar.
Via-lhes as gengivas cor-de-rosa e as línguas a abanar, mas as suas palavras não faziam mais sentido do que o zumbido da mariposa. Que estão eles a fazer aqui? Como souberam? O correto teria sido chamarem-na primeiro.
Ela era a Rainha Regente, tinham esquecido disso?
À porta do quarto da Mão encontrava-se Sor Meryn Trant com a sua armadura e manto brancos. A viseira do seu elmo estava aberta, e os papos sob os olhos davam-lhe um ar de quem ainda estava meio a dormir.
— Levai esta gente daqui — disse-lhe Cersei. — O meu pai está na latrina?— Levaram-no de volta para a cama, senhora. — Sor Meryn abriu a porta para ela entrar.
A luz da manhã entrava em diagonal através das portadas, e ia pintar barras douradas nas esteiras espalhadas pelo chão do quarto. O tio Kevan estava de joelhos ao lado da cama, tentando rezar, mas quase não conseguia forçar as palavras a sair. Guardas aglomeravam-se perto da lareira. A porta secreta de que Sor Osmund falara encontrava-se escancarada por trás das cinzas, não ultrapassando o tamanho de um forno. Um homem teria de gatinhar.
Mas Tyrion é só meio homem. O pensamento irritou-a. Não, o anão está trancado numa cela negra. Aquilo não podia ser obra sua. Stannis, disse a si própria, é Stannis quem está por trás disto. Ele ainda tem partidários na cidade. Ele, ou os Tyrell…
Sempre se falara de passagens secretas no interior da Fortaleza Vermelha. Supunha-se que Maegor, o Cruel, tinha morto os homens que construíram o castelo para manter o conhecimento sobre elas secreto.
Quantos outros quartos terão portas escondidas? Cersei teve uma súbita visão do anão a sair de gatas de detrás de uma tapeçaria no quarto de Tommen com uma lâmina na mão. Tommen está bem guardado, disse a si própria. Mas o Lorde Tywin também estivera bem guardado.
Por um momento, não reconheceu o morto. Sim, tinha um cabelo semelhante ao do pai, mas aquele era decerto outro homem qualquer, um homem mais pequeno, e muito mais velho. Tinha o roupão puxado para cima em redor do peito, o que o deixava nu abaixo da cintura. O dardo atingira-o na virilha, entre o umbigo e o membro viril, e penetrara tão profundamente que apenas se viam as penas. Os pêlos púbicos tinham sido deixados rígidos pelo sangue seco. Mais sangue coagulava no umbigo. O cheiro que ele exalava a fez franzir o nariz.
— Tirai-lhe o dardo do corpo — ordenou. — Este homem é a Mão do Rei! — E o meu pai. O senhor meu pai. Deveria gritar e arrancar os cabelos?
Dizia-se que Catelyn Stark rasgara o próprio rosto em tiras sangrentas quando os Frey lhe mataram o precioso Robb. Gostarias disso, pai? , desejou perguntar-lhe. Ou quererias que eu fosse forte? Choraste pelo teu pai?
O avô morrera quando Cersei tinha apenas um ano de idade, mas conhecia a história. O Lorde Tytos tornara-se muito gordo, e o coração rebentara-lhe um dia, enquanto subia as escadas para ir ter com a amante. O
pai de Cersei encontrava-se em Porto Real quando isso acontecera, servindo como Mão do Rei Louco. Lorde Tywin estivera com frequência em Porto Real quando ela e Jaime eram jovens. Se ele chorara quando lhe trouxeram a notícia da morte do pai, fizera-o onde ninguém pudesse ver as lágrimas.
A rainha sentia as unhas a enterrar-se nas palmas das mãos.
— Como pudestes deixa-lo assim? O meu pai foi Mão de três reis, o maior homem que alguma vez caminhou nos Sete Reinos. Os sinos têm de soar por ele, tal como soaram por Robert. Tem de ser banhado e vestido como é próprio do seu estatuto, de arminho, pano de ouro e seda carmesim.