— O dedo? — Alayne voltou a corar. — Eu não... nunca...
A Senhora Myranda riu-se tanto que Mya Stone deitou um relance para trás.
— Não se incomode com isso, Alayne, tenho a certeza de que é suficientemente grande.
Passaram por baixo de um arco esculpido pelo vento, onde longos pingentes pendiam da pedra clara, pingando sobre eles. Do outro lado, o caminho estreitava e mergulhava bruscamente por trinta metros ou mais.
Myranda foi forçada a deixar-se ficar para trás. Alayne afrouxou as rédeas da mula. A inclinação daquela parte da descida a obrigou a se agarrar bem à sela. Os degraus tinham sido ali desgastados e alisados pelos cascos ferrados de todas as mulas que os tinham pisado, até se assemelharem a uma série de bacias pouco profundas de pedra. Água enchia o fundo das bacias, cintilando dourada ao sol da tarde. Agora é água, pensou Alayne, mas ao chegar a noite transformará toda em gelo. Apercebeu-se de que estava retendo a respiração, e soltou-a. Mya Stone e Lorde Robert tinham quase atingido a agulha de rocha onde o declive voltava a diminuir. Tentou olhar para eles, e só para eles. Não cairei, disse a si mesma. A mula de Mya me levará até ao outro lado. O vento guinchava à sua volta, enquanto o animal ia avançando passo a passo, aos solavancos e raspando com as patas.
Pareceu demorar uma vida.
Então, de súbito, viu-se no fim da descida com Mya e o seu pequeno senhor, aninhados por baixo de uma retorcida agulha rochosa. Em frente estendia-se uma depressão elevada, estreita e gelada. Alayne ouvia o vento a gritar, e sentia-o a puxar-lhe o manto. Lembrava-se daquele lugar, da subida.
Então assustara-a, e assustava-a agora.
— É mais largo do que parece — estava Mya dizendo à Lorde Robert em voz alegre. — Um metro de largura, e não tem mais de seis metros de comprimento, não é nada.
— Não é nada — disse Robert. Tinha a mão tremendo.
Oh, não, pensou Alayne. Por favor. Aqui não. Não agora.
— É melhor levar as mulas pela arreata — disse Mya. — Se aprouver ao senhor, eu levo a minha primeiro, e depois volto para vir buscar a sua. —Lorde Robert não respondeu. Fitava a estreita depressão com os seus olhos avermelhados. — Não demorarei, senhor — prometeu Mya, mas Alayne duvidava de que o rapaz sequer a ouvisse.
Quando a menina bastarda tirou a mula de baixo do abrigo da agulha, o vento capturou-a nos seus dentes. O seu manto se ergueu, torcendo-se e batendo no ar. Mya cambaleou, e durante meio segundo pareceu que seria arrastada para o precipício, mas conseguiu de algum modo recuperar o equilíbrio e avançou.
Alayne tomou a mão enluvada de Robert na sua para lhe parar o tremor.
— Pisco-doce — disse — estou assustada. Pegue na minha mão, e me ajude a atravessar. Sei que você não tem medo.
Ele olhou-a, com pupilas que eram pequenas cabeças escuras de alfi-nete em olhos tão grandes e brancos como ovos.
— Não tenho?
— Você, não. É o meu cavaleiro alado. Sor Pisco-doce.
— O Cavaleiro Alado podia voar — sussurrou Robert.
— Mais alto do que as montanhas. — E deu-lhe um apertão na mão.
A Senhora Myranda se juntara eles na agulha.
— Pois podia — ecoou, quando viu o que estava a acontecer.
— Sor Pisco-doce — disse o Lorde Robert, e Alayne compreendeu que não se atreveria a esperar pelo regresso de Mya. Ajudou o rapaz a desmontar e, de mãos dadas, saíram para a depressão de rocha nua, com os mantos batendo e torcendo nas suas costas. A toda a volta havia ar e céu vazio, o chão caía abruptamente de ambos os lados. Havia gelo sob os seus pés, e pedras partidas só à espera para torcerem um tornozelo, e o vento uivava ferozmente. Soa como um lobo, pensou Sansa. Um lobo fantasma, tão grande como montanhas.
E então se viram do outro lado, e Mya Stone estava a rindo e erguendo Robert para um abraço.
— Cuidado — disse Alayne. — Ele pode te machucar a esbravejar.
Não parece, mas pode. — Arranjaram um lugar para ele, uma fenda na rocha, para o manter abrigado do vento frio. Alayne cuidou dele até os tremores passarem, enquanto Mya regressava para ajudar os outros a atravessar.
Mulas frescas os esperavam em Neve, bem como uma refeição quente constituída por cabra estufada e cebolas. Comeu com Mya e Myranda.
— Então além de bela é corajosa. — disse-lhe Myranda.
— Não. — O elogio a fez corar. — Não sou. Estava tão assustada.
Não me parece que tivesse atravessado sem Lorde Robert. — Virou-se para Mya Stone. — Quase caiu.
— Está enganada. Eu nunca caio. — O cabelo de Mya caíra-lhe sobre o rosto, escondendo um olho.
— Eu disse quase. Eu vi. Não teve medo?
Mya abanou a cabeça.
— Lembro-me de um homem me atirando ao ar quando era muito pequena. Ele é alto como o céu, e me atira tão alto que eu me sinto a voar.
Estamos os dois rindo, rindo tanto que quase não consigo respirar, e por fim eu rio com tanta força que me molho toda, mas isso só o faz rir ainda mais.
Nunca tinha medo quando ele me atirava. Sabia que estaria sempre lá para me apanhar. — Empurrou o cabelo para trás. — E então houve um dia que não estava. Os homens vão e vêm. Mentem, morrem ou nos abandonam.
Mas uma montanha não é um homem, e uma pedra é filha da montanha. Eu confio no meu pai e confio nas minhas mulas. Não cairei. — Pousou a mão num esporão irregular de rocha e pôs-se em pé. — É melhor acabar. Ainda temos um longo caminho a percorrer, e me cheira a tempestade.
A neve começou a cair no momento em que saíam de Pedra, o maior e o mais baixo dos três castelos intermediários que defendiam a abordagem ao Ninho da Águia. Por essa altura, caía o ocaso. A Senhora Myranda sugeriu que talvez pudessem voltar para trás, passar a noite em Pedra e reatar a descida quando o sol nascesse, mas Mya não quis ouvir falar da ideia.
— Por essa altura, a neve pode ter metro e meio de profundidade, e os degraus estarão traiçoeiros até para as minhas mulas — disse. — É melhor continuarmos. Iremos devagar.
E foi o que fizeram. Abaixo de Pedra, os degraus eram mais largos e menos íngremes, ziguezagueando para dentro e para fora dos grandes pinheiros e das árvores-sentinela cinzentas-esverdeadas que cobriam as encostas inferiores da Lança do Gigante. As mulas de Mya, aparentemente, conheciam cada raiz e pedra da descida, e alguma que elas esquecessem era lembrada pela menina bastarda. Decorreu metade da noite até avistarem as luzes dos Portões da Lua através da neve que caía. A última parte da viagem foi a mais pacífica. O nevão era constante, cobrindo o mundo de branco. O Pisco-doce adormeceu na sela, oscilando de um lado para o outro com os movimentos da mula. Até a Senhora Myranda se pôs a bocejar e a queixar-se de cansaço.
— Temos aposentos preparados para todos vós — disse a Alayne — mas se quiser, pode dividir a minha cama esta noite. Tem tamanho suficiente para quatro.
— Me sentiria honrada, senhora.
— Randa. Pode se achar com sorte por eu estar tão cansada. Só me apetece me enrolar e dormir. Normalmente, quando as senhoras partilham a minha cama têm de pagar um imposto de almofada e me contar tudo sobre as malvadezas que fizeram.
— E se não fizeram malvadezas?
— Ora, nesse caso têm de confessar todas as malvadezas que querem fazer. Você não, claro. Consigo ver como é virtuosa só de olhar para essas suas bochechas rosadas e grandes olhos azuis. — Voltou a bocejar. — Espero que tenha os pés quentes. Detesto companheiras de cama com pés frios.