Quaisquer sonhos que Brienne pudesse ter tido haviam desaparecido quando a aurora a despertou. Sentia as pernas duras como madeira devido ao terreno frio, mas ninguém a molestara, e os seus bens mantinham-se intactos.
Os cavaleiros andantes estavam acordados e em pé. Sor Illifer esfolava um esquilo para o pequeno almoço, enquanto Sor Creighton estava virado para uma árvore, aliviando-se numa boa e longa mijada. Cavaleiros andantes, pensou , velhos, vaidosos, roliços e míopes, mas apesar de tudo homens decentes. Animava-a saber que ainda existiam homens decentes no mundo.
Quebraram o jejum com esquilo assado, papa de bolota e picles, enquanto Sor Creighton a regalava com as suas façanhas na Água Negra, onde matara uma dúzia de temíveis cavaleiros de que ela nunca ouvira falar.
— Oh, foi uma luta fora do comum, senhora — disse — uma rara e sangrenta batalha. — Admitiu que Sor Illifer também lutara nobremente na batalha. O próprio Illifer pouco disse. Quando chegou o momento de reatarem a viagem, os cavaleiros puseram-se um de cada lado dela, como guardas a proteger uma qualquer grande senhora… embora aquela senhora fizesse de ambos os protetores anões e estivesse na ocasião melhor armada e couraçada.
— Alguém passou durante os seus turnos? — perguntou-lhes Brienne.
— Alguém assim como uma donzela de treze anos, com cabelo ruivo? Disse Sor Illifer, o Sem Dinheiro. — Não, senhora. Ninguém.
— Eu tive alguns. — Interpôs Sor Creighton. — Um moço de lavoura qualquer montado num cavalo pigarço, e meia hora mais tarde meia dúzia de homens a pé com bordões e gadanhas. Viram a nossa fogueira, e pararam para deitar um longo olhar aos nossos cavalos, mas eu mostrei-lhes um vislumbre do meu aço e disse-lhes para prosseguirem caminho. Tipos duros, pelo aspecto, e também desesperados, mas não o suficiente para brincar com Sor Creighton Longbough. — Pois não, pensou Brienne, assim tão desesperados, não. Virou a cabeça para esconder o sorriso. Felizmente, Sor Creighton estava demasiado absorto na história da sua épica batalha com o Cavaleiro da Galinha Vermelha para reparar no divertimento da donzela.
Era bom ter companheiros na estrada, mesmo companheiros como aqueles dois.
Era meio dia quando Brienne ouviu cânticos à deriva através das árvores nuas e castanhas.
— Que som é aquele? — Perguntou Sor Creighton.
— Vozes, erguidas em prece. — Brienne conhecia o cântico. Estão a implorar proteção ao Guerreiro e a pedir a Velha que lhes ilumine o caminho.
Sor Illifer, o Sem Dinheiro, descobriu a sua lâmina surrada e freou o cavalo para esperar a chegada do grupo.
— Já estão próximos.
Os cânticos enchiam a floresta como um trovão piedoso. E de súbito a fonte do som surgiu na estrada. Um grupo de irmãos suplicantes seguia à frente, homens mal vestidos e barbudos com vestes de tecido grosseiro, alguns descalços e outros de sandálias. Atrás deles marchavam sessenta homens, mulheres e crianças esfarrapadas, uma porca malhada e várias ovelhas. Vários dos homens traziam machados, e eram mais os que empunhavam cacetes e mocas toscas. Por entre eles seguia uma carroça de duas rodas feita de madeira cinzenta e lascada, contendo uma grande pilha de crânios e bocados quebrados de osso. Quando viram os cavaleiros andantes, os irmãos mendicantes fizeram alto, e o cântico morreu.
— Bons cavaleiros. — Disse um deles — a Mãe ama-vos.
— E a vós, irmão. — Disse Sor Illifer. — Quem sois?
— Pobres companheiros. — Disse um homem grande com um machado.
Apesar do frio da floresta outonal, não trazia camisa, e no peito tinha esculpida uma estrela de sete pontas. Guerreiros ândalos ostentavam estrelas daquelas gravadas na carne quando atravessaram pela primeira vez o mar estreito para esmagar os reinos dos Primeiros Homens.
— Marchamos para a cidade. — Disse uma mulher alta de detrás da carroça — para levar estes ossos sagrados a Baelor, o Abençoado, e procurar o auxílio e a proteção do rei.
— Juntai-vos a nós, amigos. — Exortou um homem magro e pequeno que trajava uma veste de septão no fio e usava um cristal num colar em volta do pescoço. — Westeros tem falta de todas as espadas.
— Nós vamos a Valdocaso — declarou Sor Creighton — mas talvez pudéssemos levar-vos em segurança até Porto Real.
— Caso tenham dinheiro para nos pagar pela escolta. —Acrescentou Sor Illifer, que parecia tão prático como sem dinheiro.
— Os pardais não têm necessidade de ouro — disse o septão.
Sor Creighton não compreendeu.
— Pardais?
— O pardal é a mais humilde e a mais comum das aves, tal como nós somos os mais humildes e mais comuns dos homens. — O septão possuía uma cara magra e angulosa e uma curta barba, grisalha e castanha. O seu cabelo fino estava puxado para trás e atado atrás da cabeça e tinha os pés nus e negros, nodosos e duros como raízes de uma árvore.
— Estes são os ossos de homens santos, assassinados pela sua fé.
Serviram os Sete até a morte. Alguns morreram à fome, outros foram torturados. Septos foram pilhados, donzelas e mães violadas por homens ímpios e adoradores de demônios. Até irmãs silenciosas foram molestadas.
A nossa Mãe no Céu grita na sua angústia. É a hora de todos os cavaleiros ungidos abandonarem os seus senhores terrenos e defenderem a nossa Fé Sagrada. Vinde conosco para a cidade, caso amais os Sete.
— Tenho bastante amor por eles. Disse Illifer — mas preciso comer.
— Tal como todos os filhos da Mãe.
— Vamos para Valdocaso — disse Sor Illifer terminantemente. Um dos irmãos mendicantes cuspiu, e uma mulher soltou um gemido.
— São falsos cavaleiros — disse o grandalhão com a estrela gravada no peito. Vários dos outros brandiram cacetes. O septão descalço acalmou-os com uma palavra.
— Não julgueis, pois o julgamento cabe ao Pai. Deixai-os passar em paz. Eles também são pobres companheiros, perdidos na terra.
Brienne fez a égua avançar.
— A minha irmã também está perdida. Uma moça de treze anos com cabelo ruivo, bonita de se ver.
— Todos os filhos da Mãe são bonitos de se ver. Que a Donzela vigie esta pobre moça… e a vós também, julgo eu. — O septão pôs um dos tirantes da carroça ao ombro e começou a puxar. Os irmãos mendicantes recomeçaram o cântico. Brienne e os cavaleiros andantes ficaram parados, montados nos cavalos, enquanto a procissão passava lentamente por eles, seguindo a estrada sulcada na direção de Rosby. O som dos seus cânticos foi lentamente minguando até morrer. Sor Creighton ergueu uma nádega da sela para coçar o traseiro.
— Que tipo de homem mataria um santo septão?
Brienne conhecia esse tipo de homem. Perto de Lagoa da Donzela, recordava-se, os Bravos Companheiros tinham pendurado um septão, de cabeça para baixo, do ramo de uma árvore, e usado o seu cadáver para praticar tiro ao alvo. Perguntou a si própria se os seus ossos estariam empilhados naquela carroça com todos os outros.