mesmo decidiu Sor Robin Ryger, o capitão da guarda de Correrrio.
— Este castelo foi o meu lar durante quarenta anos — disse Grell.
— Você diz que eu sou livre para partir, mas para onde? Sou velho e corpulento demais para dar em cavaleiro andante. Mas os homens são sempre bem-vindos na Muralha.
— Como quiser — disse Jaime, embora isso fosse um aborrecimento. Permitiu que ficassem com as armas e armaduras e destacou uma dúzia dos homens de Gregor Clegane para os escoltar para Lagoa da Donzela. Entregou o comando a Raff, aquele a quem chamavam o Querido.
— Assegura-se de que os prisioneiros chegam a Lagoa da Donzela inteiros — disse ao homem — senão aquilo que Sor Gregor fez ao Bode parecerá uma engraçada partida comparada com o que farei a você.
Mais dias se passaram. Lorde Emmon reuniu toda Correrrio no pátio, tanto a gente de Lorde Edmure, quanto a sua, e falou-lhes durante quase três horas sobre o que esperava deles, agora que era Emmon o seu chefe e senhor. De vez em quando brandia o pergaminho, enquanto moços da estrebaria, criadas e ferreiros escutavam num silêncio taciturno e uma ligeira chuva caía sobre todos, O cantor, aquele que Jaime obtivera de Sor Ryman Frey, também estava à escuta. Jaime deu com ele em pé numa portada aberta, onde estava seco.
— Sua senhoria devia ter sido cantor — disse o homem. — Este discurso é mais longo do que uma balada da Marca, e não me parece que ele tenha parado para respirar.
Jaime foi obrigado a rir.
— Lorde Emmon não precisa de respirar, desde que consiga mastigar. Vai fazer uma canção disto?
— Uma engraçada. Vou chamar-lhe "Falando aos Peixes".
— Desde que não a toque onde a minha tia possa ouvi-la. — Jaime nunca antes prestara muita atenção ao homem. Era um tipo pequeno, vestido com umas bragas verdes esfarrapadas e uma túnica no fio, de um tom mais claro de verde, com remendos castanhos de couro a cobrir os buracos. O
nariz era longo e aguçado, o sorriso grande e solto. Fino cabelo castanho caía-lhe até ao colarinho, emaranhado e sujo. Uns cinqüenta anos, pensou Jaime, harpista ambulante e bem gasto pela vida. — Não era de Sor Ryman quando te encontrei? — perguntou.
— Só por quinze dias,
— Estava à espera que partisse com os Frey.
— Aquele ali em cima é um Frey — disse o cantor, indicando Lorde Emmon com a cabeça — E este castelo parece um sítio bem aconchegado pra passar o Inverno. O Wat Sorriso-Branco foi pra casa com o Sor Forley, de modo que eu pensei em ver se conseguia ficar com o lugar dele. O Wat tem aquela voz aguda e doce que gente como eu não pode esperar igualar.
Mas eu sei o dobro das canções picantes que ele sabe. Com a sua licença, senhor.
— Deve dar magnificamente bem com a minha tia — disse Jaime.
— Se espera passar aqui o inverno assegure-se de que a sua música agrade à Senhora Genna. É ela que importa.
— Você não?
— O meu lugar é junto do rei. Não ficarei aqui por muito tempo.
— Lamento ouvir isso, senhor. Conheço canções melhores do que
"As Chuvas de Castamere". Podia ter te tocado... oh, toda a espécie de coisas.
— Noutra altura qualquer — disse Jaime. — Tem nome?
— Tom de Seterrios, se aprouver ao senhor. — O cantor tirou o chapéu. — Mas a maior parte das pessoas chama-me Tom das Sete.
— Canta bem, Tom das Sete.
Nessa noite sonhou que estava de regresso ao Grande Septo de Baelor, ainda em vigília sobre o cadáver do pai. O septo estava em silêncio e mergulhado na escuridão, até que uma mulher emergiu das sombras e se dirigiu lentamente para o estrado.
— Irmã? — disse.
Mas não era Cersei. Estava toda vestida de cinzento, uma irmã silenciosa. Um capuz e um véu escondiam-lhe as feições, mas Jaime conseguia ver as velas ardendo nas lagoas verdes dos seus olhos.
— Irmã — disse — que quereis de mim? — Esta última palavra ecoou por todo o septo, mimmimmimmimmimmimmimmimmimmimmimmim.
— Eu não sou sua irmã, Jaime. — A mulher ergueu uma mão suave e pálida e empurrou o capuz para trás. — Esqueceu-se de mim?
Posso esquecer-me de alguém que nunca conheci? As palavras ficaram-lhe presas na garganta.
Ele conhecia-a, mas tinha-se passado tanto tempo...
— Também esquecerá o senhor teu pai? Pergunto a mim mesma se alguma vez o conheceste verdadeiramente. — Os olhos dela eram verdes, o cabelo ouro tecido. Jaime não seria capaz de dizer que idade a mulher tinha.
Quinze anos, pensou, ou cinquenta. Subiu os degraus e parou junto do estrado. — Ele nunca conseguiu suportar que se rissem de si. Era isso que mais detestava.
— Quem é você? — Tinha de a ouvir dizê-lo.
— A questão é: quem és você?
— Isto é um sonho.
— É? — Ela fez um sorriso triste. — Conte as mãos, pequeno.
Uma. Uma mão, apertada com força em volta do cabo da espada. Só uma.
— Nos meus sonhos, tenho sempre duas mãos. — Ergueu o braço direito e fitou sem compreender a feiura do seu toco.
— Todos sonhamos com coisas que não podemos ter. Tywin sonhava que o filho seria um grande cavaleiro, que a filha seria rainha.
Sonhava que seriam tão fortes, corajosos e belos que nunca ninguém se riria deles.
— Eu sou um cavaleiro — disse-lhe Jaime — e Cersei uma rainha.
Uma lágrima rolou pelo rosto da mulher. Voltou a erguer o capuz e virou-lhe as costas. Jaime gritou-lhe, mas ela já se afastava, com a saia a sussurrar canções de embalar ao raspar no chão. Não me deixe, quis gritar, mas claro que ela já os deixara há muito.
Acordou nas trevas, tremendo. O quarto tornara-se frio como gelo.
Jaime afastou as mantas com o toco da mão da espada. Viu que o fogo na lareira se apagara, e a janela fora aberta pelo vento.
Atravessou o aposento negro como breu, para ir lutar com as portinholas, mas quando atingiu a janela, os seus pés nus encontraram algo húmido. Jaime recuou, momentaneamente sobressaltado. O seu primeiro pensamento foi de sangue, mas o sangue não teria sido tão frio.
Era neve, caindo através da janela.
Em vez de fechar as portinholas, escancarou-as. O pátio, em baixo, estava coberto por um fino manto branco, que se ia tornando mais espesso sob os seus olhos. Os merlões das ameias usavam capuzes brancos. Os flocos caíam em silêncio, pairando alguns pela janela para se irem derreter na sua cara. Jaime conseguia ver a sua respiração.
Neve nas terras fluviais. Se estava nevando ali, podia perfeitamente estar também nevando em Lanisporto, e em Porto Real. O inverno marcha para sul, e metade dos nossos celeiros estão vazios.
As sementeiras que ainda se encontrassem nos campos estavam perdidas. Não haveria mais plantações, nenhuma esperança de uma última colheita. Deu por si se perguntando o que pai faria para alimentar o reino, antes de se lembrar que Tywin Lannister estava morto.
Quando rompeu a manhã, a neve chegava ao tornozelo e era mais profunda no bosque sagrado, onde montes de neve tinham sido acumulados pelo vento sob as árvores. Escudeiros, moços de estrebaria e pajens de nascimento elevado tinham-se transformado de novo em crianças sob o seu frio feitiço branco, e travavam uma guerra de bolas de neve pelos pátios e ao longo das ameias. Jaime ouviu-os rir. Tinha havido uma época, não muito tempo antes, em que poderia ter estado lá fora fazendo bolas de neve com os melhores de entre eles, para as atirar em Tyrion quando se bamboleasse por perto, ou para enfiar pelas costas do vestido de Cersei. Mas preciso de duas mãos para fazer uma bola de neve decente.
Ouviu-se um leve toque na sua porta.
— Vá ver quem é, Peck.