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Pate tirou a moeda da mão do outro. O ouro parecia-lhe morno contra a pele da mão. Levou-o à boca e trincou-o, como vira os homens fazer.

Na verdade, não tinha a certeza de qual era suposto ser o sabor do ouro, mas não queria parecer um tolo.

— A chave? — inquiriu educadamente o alquimista.

Algo levou Pate a hesitar.

— É algum livro que você quer? — Dizia-se que alguns dos velhos pergaminhos valirianos trancados nas caves eram as únicas cópias que sobreviviam no mundo.

— O que eu quero não é da tua conta.

— Não. — Está feito, disse Pate a si próprio. Vai. Corre de volta ao Pena e Caneca, acorda Rosey com um beijo e diz-lhe que te pertence. Mas

ainda se deixou ficar. — Mostre-me seu rosto.

— Como quiser. — O alquimista baixou o capuz.

Era apenas um homem, e o seu rosto era apenas um rosto. Um rosto de jovem, comum, com faces cheias e a sombra de uma barba. Uma tênue cicatriz entrevia-se na bochecha direita. Tinha um nariz adunco, e uma densa cabeleira preta que se encaracolava, bem apertada, em volta das orelhas.

Não era um rosto que Pate reconhecesse.

— Não te conheço.

— Nem eu a ti.

— Quem é você?

— Um estranho. Ninguém. A sério.

— Oh. — Pate ficara sem palavras. Puxou da chave e a pos na mão do estranho, sentindo a cabeça leve, sentindo-se quase com vertigens. Rosey recordou a si próprio. — Então é tudo.

Já tinha percorrido metade da viela quando o empedrado começou a mover-se por baixo dos seus pés. As pedras estão escorregadias e úmidas, pensou, mas não era isso. Sentia o coração martelando no peito.

— O que está acontecendo? — disse. Suas pernas tinham se transformado em água. — Não compreendo.

— E nunca vai compreender — disse uma voz num tom triste.

O empedrado saltou para beijá-lo. Pate tentou gritar por ajuda, mas a voz também estava falhando.

O seu último pensamento foi para Rosey.

O PROFETA

O profeta estava afogando homens em Grande Wyk quando vieram lhe dizer que o rei estava morto.

 Era uma manhã de ventania e fria, e o mar mostrava o mesmo tom cinzento do céu. Os primeiros três homens tinham oferecido sem temor as suas vidas ao Deus Afogado, mas o quarto era fraco na fé e começou a se debater quando os pulmões gritaram por ar. Mergulhado até à cintura na rebentação, Aeron segurou o rapaz nu pelos ombros e empurrou-lhe a cabeça para baixo quando ele tentou inspirar um pouco de ar.

— Tenha coragem — disse. Viemos do mar, e ao mar temos de regressar.

Abre a boca e bebe profundamente a bênção de deus. Encha os pulmões de água, para que possa morrer e renascer. Lutar não adianta nada.

Ou o rapaz não o conseguia ouvir com a cabeça submersa nas ondas, ou a fé o tinha abandonado por completo. Desatou a espernear e a sacudir-se com tamanha violência que Aeron teve de pedir ajuda. Quatro dos seus ajudantes afogados entraram na água para segurar o desgraçado e mantê-lo submerso.

— Senhor Deus que te afogaste por nós — orou o sacerdote, numa voz profunda como o mar. — Permita que Emmond, teu servo, renasça do mar, tal como tu. Abençoe-o com sal, abençoe-o com pedra, abençoe-o com aço.

Por fim, terminou. Não havia mais bolhas de ar saindo-lhe da boca, e toda a força sumira dos membros do rapaz. Emmond flutuava de cabeça para baixo no mar pouco profundo, branco, frio e em paz.

Foi então que Cabelo Molhado percebeu que três cavaleiros tinham juntado aos seus afogados na costa pedregosa. Aeron conhecia o Sparr, um velho com cara de machadinha e olhos aguados, cuja voz trêmula era lei naquela parte de Grande Wyk. O filho Steffarion o acompanhava, com outro jovem, cujo manto vermelho-escuro e forrado de peles estava preso ao ombro com um ornamentado broche que mostrava o corno de guerra negro e dourado dos Bons Irmãos.

Um dos filhos de Gorold, decidiu o sacerdote num relance. A esposa do Goodbrother dera tardiamente à luz três filhos altos, após uma dúzia de filhas, e dizia-se que não havia homem capaz de distinguir um filho dos demais. Aeron Cabelo Molhado não se dignou a tentar. Fosse aquele Greydon, Gormond ou Gran, o sacerdote não tinha tempo para ele.

Rosnou uma ordem brusca, e os seus afogados pegaram no rapaz morto pelos braços e pernas para leva-lo até acima da linha da maré. O sacerdote seguiu-os, vestido apenas com uma tanga de pele de foca que lhe cobria as partes pudicas. Com a pele arrepiada e pingando, voltou para terra, atravessando areia molhada e fria e seixos polidos pelo mar. Um dos seus afogados entregou-lhe uma veste de pesado tecido grosseiro, tingido com tons variados de verde, azul e cinza, as cores do mar e do Deus Afogado.

Aeron envergou a veste e libertou o cabelo. Negro e molhado, seu cabelo; nenhuma lâmina tocara desde que o mar o erguera. Envolvia-lhe os ombros como um manto esfarrapado e filamentoso, e lhe caía até abaixo da cintura.

Aeron entrelaçava-o com cordões de algas, e fazia o mesmo à barba emaranhada e por cortar.

Os seus afogados formavam um círculo em volta do rapaz morto, orando. Norjen trabalhava com os seus braços, enquanto Rus estava sentado em cima do rapaz, comprimindo-lhe ritmicamente o peito, mas todos se afastaram para deixar Aeron passar. Este afastou com os dedos os lábios frios do rapaz e deu a Emmond o beijo da vida, e voltou a dar-lhe, e de novo o deu, até que o mar jorrou da sua boca. O rapaz tossiu e cuspiu e os olhos abriram-se, cheios de medo.

Outro que regressou.

Era um sinal do favor do Deus Afogado, diziam os homens. Todos os outros sacerdotes perdiam alguém de vez em quando, até Tarle, o Triplamente Afogado, que fora um dia considerado tão santo que fora escolhido para coroar um rei. Mas Aeron Greyjoy, nunca. Ele era o Cabelo Molhado, aquele que vira os salões aquáticos do próprio deus e regressara para falar deles.

— Erga-se — disse ao rapaz ofegante enquanto lhe dava uma palmada nas costas nuas. — Afogou-se e fora devolvido. O que está morto não pode morrer.

— Mas volta. O rapaz tossiu violentamente, cuspindo mais água. — Volta a erguer-se. Cada palavra era arrancada com dor, mas o mundo era assim, um homem tinha de lutar para viver. Volta a erguer-se.

Emmond pôs-se instavelmente em pé. Mais duro. E mais forte.

— Agora pertence ao deus — disse-lhe Aeron. Os outros afogados reuniram-se em volta do rapaz e todos lhe deram um murro e um beijo para lhe dar as boas-vindas à irmandade. Um deles o ajudou a envergar uma veste de tecido grosseiro tingido com tons variados de verde, azul e cinza. Outro o presenteou com uma maça feita de madeira trazida pelo mar. — Agora pertence ao mar, e por isso o mar te armou — disse Aeron. — Oramos para que maneje a sua maça com ferocidade, contra todos os inimigos do nosso deus.

Só então o sacerdote virou-se para os três cavaleiros que observavam de cima das selas.

— Vieram ser afogados, senhores?

O Sparr tossiu.

— Fui afogado em rapaz — disse. E o meu filho no dia do seu nome.

Aeron soltou uma fungada. Que Steffarion Sparr fora entregue ao Deus Afogado pouco depois de nascer não duvidava. Também conhecia o modo como isso acontecera, um rápido mergulho numa tina de água do mar que quase não molhava a cabeça do bebê. Pouco admirava que os homens de ferro tivessem sido conquistados, eles que em tempos tinham dominado todos os locais onde o som das ondas conseguisse ser ouvidos.

— Isso não foi um verdadeiro afogamento, disse aos cavaleiros.

Aquele que não morre de verdade não pode esperar erguer-se da morte.

Porque viestes, se não foi para demonstrar a vossa fé?

— O filho do Lorde Gorold veio à sua procura com notícias.

O Sparr indicou o jovem do manto vermelho.