Já havia escurecido há muito quando o sacerdote vislumbrou as pontiagudas ameias de ferro de Cornartelo, que tentavam agarrar o crescente da lua. A fortaleza de Gorold tinha um aspecto desajeitado e pesado, e foi feita com grandes pedras cortadas ao monte que se erguia por detrás. Sob as muralhas, as entradas de grutas e antigas minas abriam-se como bocas negras e desdentadas. Os portões de ferro de Cornartelo tinham sido fechados e trancados para a noite. Aeron bateu neles com uma pedra até que o barulho acordou um guarda.
O jovem que o deixou entrar era a imagem de Gormond, cujo cavalo tomara.
— Quem é você? — Quis saber Aeron.
— Gran. O meu pai o espera lá dentro.
O salão era escuro e amplo, cheio de sombras. Uma das filhas de Gorold ofereceu ao sacerdote um corno de cerveja. Outra espevitou um fogo sombrio que gerava mais fumaça do que calor. O próprio Gorold Goodbrother estava a conversar em voz baixa com um homem magro que envergava uma veste de bom tecido cinzento e usava em volta do pescoço uma corrente de muitos metais que o identificava como um meistre da Cidadela.
— Onde está Gormond? — Perguntou Gorold quando viu Aeron.
— Regressa a pé. Mande embora as mulheres, senhor. E o meistre também. Não gostava de meistres. Os seus corvos eram criaturas do Deus da Tempestade, e desde Urri que não confiava nas suas curas. Nenhum homem verdadeiro escolheria uma vida de escravatura, nem forjaria uma corrente de servidão para usar em volta da garganta.
— Gysella, Gwin, deixe-nos — disse Goodbrother secamente. — Você também, Gran. O Meistre Murenmure ficará.
— Ele sairá.
— Este salão é meu, Cabelo Molhado. Não cabe a você dizer quem deve ir e quem deve ficar. O meistre fica.
O homem vive longe demais do mar, pensou Aeron.
— Então vou eu embora — disse a Goodbrother. Esteiras secas estalejaram sob os seus pés descalços e negros quando virou e se dirigiu à porta. Parecia que tinha cavalgado muito tempo para nada.
Aeron estava quase junto da porta quando o meistre pigarreou e disse:
— Euron Olho de Corvo ocupa a Cadeira de Pedra do Mar.
O Cabelo Molhado virou-se. O salão arrefecera de um momento para o outro.
O Olho de Corvo está a meio mundo de distância. Balon mandou-o embora há dois anos, e jurou que se regressasse isso lhe custaria a vida.
— Conte-me — disse, com voz rouca.
— Entrou em Fidalporto no dia seguinte ao da morte do rei, e reclamou o castelo e a coroa na condição de irmão mais velho de Balon — disse Gorold Goodbrother. — Agora está enviando corvos, convocando a Pyke os capitães e os reis de todas as ilhas, para dobrarem os joelhos e lhe prestarem homenagem como o seu rei.
— Não. — Aeron Cabelo Molhado não pesou as palavras. — Só um homem devoto pode sentar-se na Cadeira da Pedra do Mar. O Olho de Corvo não adora nada a não ser o seu próprio orgulho.
— Esteve em Pyke não há muito tempo e viu o rei — disse Goodbrother.
— Balon disse-lhe alguma coisa acerca da sucessão?
Sim. Tinham conversado na Torre do Mar, enquanto o vento uivava do lado de fora das janelas e as ondas se esmagavam sem descanso em baixo. Balon abanara a cabeça em desespero, quando ouvira o que Aeron tinha a lhe dizer sobre o último filho que lhe restava.
— Os lobos fizeram dele um fraco, tal como eu temia — dissera o rei. — Rezo ao deus para que o tenham matado, para que não se possa atravessar no caminho de Asha. — Era essa a cegueira de Balon; se via na filha selvagem e obstinada, e acreditava que ela podia suceder-lhe. Nisso enganava-se e Aeron tentara dizer-lhe.
— Nenhuma mulher governará algum dia os homens de ferro, nem mesmo uma mulher como Asha — insistira, mas Balon sabia ficar surdo para aquilo que não desejava ouvir.
Antes que o sacerdote tivesse tempo de responder a Gorold Goodbrother, a boca do meistre abriu-se uma vez mais.
— Pelo direito, a Cadeira da Pedra do Mar pertence à Theon, ou a Asha, se o príncipe estiver morto. A lei é essa.
— Lei da terra verde — disse Aeron com desprezo. — Que nos interessa isso? Somos homens de ferro, os filhos do mar, os escolhidos do Deus Afogado. Nenhuma mulher pode nos governar, tal como nenhum homem sem deus pode fazer.
— E Victarion? — Perguntou Gorold Goodbrother. — Ele tem a Frota de Ferro. Irá Victarion avançar com uma pretensão, Cabelo Molhado?
— Euron é o irmão mais velho… — Começou o meistre.
Aeron silenciou-o com um olhar. Fosse em pequenas vilas de pescadores, fosse em grandes fortalezas de pedra, um olhar assim do Cabelo Molhado fazia com que donzelas perdessem a força nas pernas e punha crianças a correr aos gritos para junto das mães, e era mais do que o suficiente para dominar o servo com a corrente ao pescoço.
— Euron é mais velho disse o sacerdote. Mas Victarion é mais devoto.
— Chegaria a haver guerra entre eles? — Perguntou o meistre.
— Os homens de ferro não devem derramar o sangue de homens de ferro.
— Um sentimento piedoso, Cabelo Molhado. — Disse Goodbrother.
— Mas não é algo que vosso irmão partilhe. Mandou afogar Sawane Botley por dizer que a Cadeira de Pedra do Mar pertencia por direito a Theon.
— Se ele foi afogado, nenhum sangue foi derramado — disse Aeron.
O meistre e o lorde trocaram um olhar.
— Tenho de mandar uma mensagem a Pyke, e em breve — disse Gorold Goodbrother.
— Cabelo Molhado, gostaria de obter o seu conselho.
O que será homenagem ou desafio? — Aeron puxou pela barba e refletiu.
Vi a tempestade, e o seu nome é Euron Olho de Corvo.
— Por agora, envie só o silêncio — disse ao lorde. Tenho de rezar sobre isto.
— Reze o tanto que quiser — disse o meistre. Isso não muda a lei.
Theon é o legítimo herdeiro e Asha vem depois.
— Silêncio! — R ugiu Aeron. — Foi demasiado o tempo passado pelos homens de ferro ouvindo os meistres de correntes ao pescoço tagarelando sobre as terras verdes e as suas leis. É tempo de voltarmos a escutar o mar. É tempo de escutarmos a voz de deus. — A sua própria voz ressoou no salão fumacento, tão cheia de poder que nem Gorold Goodbrother nem o seu meistre se atreveram a responder.
O Deus Afogado está comigo, pensou Aeron. Ele me mostrou o caminho.
Goodbrother ofereceu-lhe o conforto do castelo para a noite, mas o sacerdote declinou. Raramente dormia sob o teto de um castelo, e nunca o fazia tão longe do mar.
— O conforto, conheço-o nos salões aquáticos do Deus Afogado, sob as ondas. Nascemos para sofrer, para que o nosso sofrimento nos faça fortes. Não preciso mais do que um cavalo repousado para me levar até Seixeira.
Isso, Goodbrother sentiu-se feliz por fornecer. Enviou também o filho Greydon, a fim de mostrar ao sacerdote o caminho mais curto através dos montes, até ao mar. A aurora ainda tardava uma hora quando partiram, mas as montadas eram resistentes e de patas seguras, e fizeram um bom tempo, apesar da escuridão. Aeron fechou os olhos e proferiu uma prece silenciosa, e passado algum tempo pôs-se a cochilar na sela.
O som chegou tênue, o grito de uma dobradiça enferrujada.
— Urri! — Murmurou e acordou, temeroso.
Não há aqui dobradiças, não há porta, não há Urri.
Um machado voador levara metade da mão de Urri quando ele tinha catorze anos e brincava à dança dos dedos, enquanto o pai e os irmãos mais velhos estavam longe, na guerra. A terceira esposa do Lorde Quellon fora uma Piper do Castelo de Donzela-rosa, uma garota com grandes seios fofos e olhos castanhos de corça. Em vez de curar a mão de Urri pelo Costume 35
Antigo, com fogo e água do mar, entregara-o ao seu meistre das terras verdes, que jurara que conseguiria voltar a coser os dedos em falta. Fizera-o, e depois usara poções, cataplasmas e ervas, mas a mão gangrenara e Urri apanhara uma febre. Quando o meistre lhe serrara o braço, era tarde demais.